"O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam"

Guimarães Rosa

1 de jun. de 2013

AUTOMATISMO MODERNOS, O ESTRANHO E OS ZUMBIS

Daniel Ribeiro Branco*
Ishtar
Cambaleantes, famintos por carne humana e sem qualquer resquício de humanidade ou memória de suas antigas vidas. São estas as características deste personagem imaginário que recentemente passou a protagonizar os enredos a terem sucesso de público na literatura, cinema, jogos eletrônicos e televisão. Para aqueles que têm acompanhado as produções atuais destas mídias, fica fácil perceber a estranha presença dos zumbis.
A influência parece ser tanta que, mesmo na literatura medieval, onde seria difícil imaginar um zumbi, deu-se um jeito de inseri-lo afim, é claro, de satisfazer a maior fatia possível do mercado de tendências. Como nos romances épicos de George R. R. Martin – A Game of Thrones – nos quais os mortos retornam para caçar os vivos durante a noite. Ainda que esta inserção pareça forçada, o autor cede à exigência de que, se a meta é o sucesso de vendas, os mortos-vivos têm que estar presentes na trama.
Seriam estas criaturas resultado deste começo de século? Aqui faz-se necessário um breve levantamento histórico.
A presença dos zumbis ganhou força em filmes de horror dos anos 80, porém já em 1839 há um interessante conto de Edgar Allan Poe (The Fall of the House of Usher), considerado o pai dos gêneros do suspense e horror, que retrata uma situação muito similar, levantando a possibilidade de que os zumbis já “existem” há algum tempo. Esta criatura que ressurge do mundo dos mortos para alimentar-se de carne humana está presente na mitologia de variados locais como Europa, Ásia e África. Sua raiz histórica pode remontar à narrativas de mais de quatro mil anos – a deusa Ishtar, presente na epopeia de Gilgamesh, ameaça abrir os portões do submundo para que os mortos venham alimentar-se da carne dos vivos – e encontra outros similares como os Draugr na cultura proto-germânica, os  Chiang-shih na cultura chinesa e, finalmente, em algumas culturas africanas que chamam de Zumbís Hoodoo estas criaturas que com um feitiço retornam da morte.
Draugr

Sempre que uma produção humana ganha uma forte adesão e perdura por gerações, como têm se mostrado os zumbis e suas variantes, é possível interrogar o que desperta tamanho fascínio. A exemplo do psicanalista Bruno Battelheim com as histórias infantis e de Freud com obras da literatura, um possível caminho é interrogar o que na vida psíquica dos indivíduos estas produções podem estar integrando. Sob esta perspectiva, algumas questões podem ser levantadas.

Uma forma de pensar este fenômeno utilizando o método psicanalítico é interpretar aquilo que expõe além da impressão inicial. Ou seja, dar um “passo” acima do discurso diretamente exposto. Embora vários fatores possam emergir deste tipo de análise, para este ensaio serão levantadas duas questões que parecem destacar-se. A primeira diz respeito a algo que se move de forma automática, impulsionado pela fome, sem pensar: um autômato. Acrescenta-se a isto a representação de um corpo humano, de carne e ossos, mas que já não é vivo internamente, não tem memória, não tem julgamento nem cultura e, portanto, não pode mais ser considerado humano.
Freud, em 1919, escreve O Estranho, trabalho no qual faz uma analogia entre a literatura e personagens e situações capazes de fascinar por sua estranheza, por causar inquietação. Como isto fascina tanto no sentido do estranho, aquilo que nos é Unheimlich (estranho, o título do texto), mas também atrai por manifestar algo que obscuramente move-se no interior psíquico de todos, algo de familiar, algo de Heimlich (a mesma raiz da palavra estranho em alemão serve para familiar). Neste texto, o pai da Psicanálise analisa também, dentre outros personagens, a figura do autômato que assim como os zumbis causariam inquietação também pela dúvida em relação à sua humanidade, uma cópia teoricamente vazia.
Linguagens Formais e Autômatos

Pensando sobre este aspecto, o zumbi parece pertencer à categoria de autômato, assim como também daquele que fascina por trazer aquilo que estaria nas sombras do ser, mostrando algo de seus desejos encobertos. E quais desejos poderiam ser estes?

É interessante pensar que é em algumas produções culturais que desejos proibidos poderiam ser atuados de formas simbolizadas ou, no mínimo, seguras para o indivíduo. Pensando no zumbi como um ser humano, mas que por algum motivo o deixa de ser, o grande mote destas produções está em matar um semelhante – que se assemelha a um humano mas, neste caso, não é – sem as consequências que isto teria: poder matar sem que seja um ato de assassinar. No caso das histórias de zumbis, este desejo poderia ter sua catarse escapando de forma segura às punições internas do superego. Mata-se o simulacro, realiza simbólica e parcialmente um desejo e escapa do risco de qualquer punição.
A própria noção de autômato, pensado como aquele que age sem uma intermediação do pensamento, talvez tenha alguma relação com o indivíduo, pois distante de seu próprio agir, alienado de si, anestesiado de seu próprio mundo interno e que deseja apenas atuar no mundo em busca da satisfação. O filósofo alemão Theodor Adorno usa o termo “máscara mortuária” para definir o sujeito alienado de si, que perambula pela vida, de forma análoga ao que presenciou em campos de concentração nazistas quando o indivíduo se comportava como um morto-vivo até se agarrar à cerca elétrica para morrer; desta forma eles sabiam de antemão que o indivíduo iria para a cerca. É fácil uma analogia ao sujeito alienado de si, que não vai diretamente para a cerca, mas perambula pela vida como um morto-vivo, um autômato.
Portanto além da catarse de desejos e do estranhamento causado por algo de familiar oculto nestas fantasias, o apocalipse zumbi venha denunciar algo sobre o modo de vida da atualidade. E nada mais psicanalítico do que pensar que é a escuta diferenciada do analista que pode oferecer uma saída a esta alienação, ao desejo não dito que compulsivamente se repete, para que talvez se possa agir menos de forma automática e mais de forma integrada.

*Daniel Branco Ribeiro é psicólogo (CRP 08/16136)

Para saber mais:
Freud, 1919: O Estranho;
Freud, 1913. Totem e Tabu;
Adorno, 1944: A Dialética do Esclarecimento;

Poe, 1832: The Fall of the House of Usher.

17 de mai. de 2013

CONTEMPORANEIDADE E PSICANÁLISE

*Marco Correa Leite
Quando o Supérfluo se tornou o necessário, podemos dizer que enfim, entramos verdadeiramente em uma sociedade diferente da modernidade. Chamam este tempo de contemporaneidade, ou ainda, a sociedade líquida, sem vínculos, onde acima de tudo o que prevalece é o efêmero.
Mas afinal de contas, o que é que aconteceu que as pessoas deixaram de importar-se com o amanhã?
Cavernas de Mármore do Lago Carrera - Chile
Será que o consumismo conseguiu deixar uma marca indelével tão arraigada em nossa psique que acabamos de fato entrando na onda, de uma vez por todas, de que tudo que eu quero eu posso conseguir. Seja através da compra, do roubo, ou da troca, é possível satisfazer meus desejos, e ainda por cima, existirá sempre algo que o satisfará.
Isso é que imaginamos quando damos uma olhada na sociedade um pouco que superficialmente. Claro que reconheço os vínculos cada vez mais instáveis. Claro que percebo que o fútil e o efêmero, ou seja, a aparência hoje em dia se sobressai à essência, se sobressai àquilo que está arraigado em nós. Consigo enxergar sem muito sacrifício relações humanas cada vez mais pragmáticas na medida em que conquisto o outro até que eu usurpe dele todo seu valor, sua vida, seu ânimo, até que ele não me sirva mais, como se eu fosse seu centro, seu rei, seu deus, e ele, um mero súdito que está ali na posição de objeto para me servir.
Reconheço que as pessoas cada vez se utilizam de uma máscara perversa, na qual utilizam do outro como um objeto, até que o outro torne-se dejeto. A partir daí, cada um para seu canto.
Onde está o amor no qual aprendemos a sermos felizes com a alegria estampada no sorriso do outro. Onde estará o ser feliz com o outro, ao invés de puro sacrifício de uma das partes? Onde estará a virtude de ser, de existir para além das máscaras que encobrem os sujeitos na contemporaneidade. 
Pergunto-me por fim, onde estará os sujeitos, os indivíduos, os humanos?
Na clínica, timidamente eles acabam aparecendo.
Homens que buscam desesperadamente alguém pra conversar e pagam um preço altíssimo por isso. Mulheres que encontram-se com homens diferentes todas as noites, mas que ainda esperam em seu íntimo, pelo seu príncipe encantado. Pessoas que buscam encontrar outras pessoas na vida, e o que acabam encontrando de melhor é a figura do analista treinado para isso.
Liz McKay
Não é de hoje que se conhecem relatos de casos de homens que buscam prostitutas para conversar. Pode ser na obra "O doce veneno do escorpião" ou na vida real. Pessoas pagam para poderem ser ouvidas, pagam para encontrar-se alguém.
Na análise, embora seja uma experiência paga, e acima de tudo artificial, visto que é criada, a pessoa encontra-se consigo mesma. Percebe-se pessoa, descobre-se alguém, e a partir daí, posso até arriscar, surge um ser humano.
Até então vivendo sem sentido algum, a experiência analítica promove uma escuta de si mesmo, e aos poucos os sentidos vão sendo construídos e reconstruídos. A vida começa a ser vista de forma diferente, na medida em que cada um suporta. As relações começam a ter um gosto especial, podendo até chegar ao limite de, quem sabe, o analisante encontrar um outro alguém fora do consultório.
Os pais, irmãos, irmãs, familiares, deixam de ser apenas membros, e tornam-se pessoas. Os amigos passam a ser importantes e insubstituíveis, não que não possam ser trocados, ou perdidos, mas passam a ganhar o status de únicos, cada um com suas características próprias. 
A maioria das pessoas que entram em análise acabam percebendo que o sonho que viviam, por melhor que seja era muito mais um pesadelo. Acordam bruscamente com as marcas do tempo que passou sem saber direito o que ou quem as deixou ali, mas passam, a partir daquele momento a colorir com as cores que deseja e dar um sentido próprio e querido para cada marca, para cada cicatriz.
Psicanálise em nosso tempo corrido, do efêmero, do vulgar, dos padrões despadronizados onde o que reina é a liquidez dos laços e das relações sociais parece coisa de louco. E talvez até seja.
Posso assegurar no entanto que os normais muitas vezes invejam os loucos. Basta recorrermos à alguns nomes como João Paulo II, Gandhi, Jesus Cristo, Sidharta Gautama (o primeiro Buda), entre tantos outros que foram considerados loucos.
Todos estes e muitos outros tem uma coisa em comum, eles tinham laços profundos consigo mesmos, com os outros, e também buscavam a paz. Cada um de sua forma encontrou na sua vida a paz que almejava. Mesmo que para todo o resto do mundo aquilo fosse dor, sofrimento, angústia, loucura. Para eles, era justamente o que buscavam.

A análise hoje permite este espaço, este tempo, em que as pessoas dedicam a si mesmas para encontrarem-se no turbilhão tempestuoso que é a vida. Mesmo que a tempestade muitas vezes continue, caba chegando um momento em que ela deixa de ser tão assustadora.
Arrisco a dizer que a psicanálise nunca foi tão necessária quanto é hoje em dia. Poder ter um momento para si mesmo, onde o outro ali na frente não aponta ninguém além de você mesmo. Pode parecer coisa de louco, talvez até seja, mas é o primeiro passo para um vínculo mais profundo consigo mesmo, e depois com os outros. 
Como as pessoas poderiam ter um vínculo profundo se não conhecem a quem estão para vincular-se? Não se casa alguém, ou fica-se sócio com alguém que não conhecemos. Assim somos todos nós. Estamos casados em um corpo com alguém estranho a nós mesmos. Até peço desculpas pela franqueza, mas é impossível ter paz com quem não se conhece, é impossível ter paz consigo mesmo se não nos conhecermos ao menos um pouco, o nome disso é indiferença. A paz, é fruto do conhecimento que tenho do outro, e a partir daí do respeito mútuo, entre eu e, por que não, eu mesmo.

*Marco Correa Leite - Psicólogo Clínico e Mestrando em Psicologia pela UEM CRP 08/17139

20 de mar. de 2013

MITO NA OBRA DE CARL G. JUNG


Vinícius Romagnolli R. Gomes*

Carlos Pertuis
O mito se faz presente na sociedade humana desde a mais remota antiguidade. Nas sociedades antigas pode-se perceber a presença da mitologia na organização cultural, na vida individual e na coletiva, tanto nos costumes como na religião. O mais antigo épico mitológico preservado é a Epopéia de Gilgamésh (aproximadamente 2.750 a.C), a qual trata da história do rei Gilgamesh, da antiga cidade de Uruk. O mito narra as peripécias de Gilgamesh (constituído de dois terços divinos e um terço humano) e de seu companheiro Einkidu, que veio dos céus num cometa. Ambos desafiam a poderosa deusa Ishtar, e Einkidu é morto. Gilgamesh busca a imortalidade e tenta descer ao mundo dos mortos para resgatar a alma de Einkidu. O mito de Gilgamesh elabora assim as questões religiosas da morte, da imortalidade e da finitude do ser humano.

Como podemos ver, o mito está associado ao misterioso e ao que não pode ser expresso pelo discurso lógico da consciência (mundo do logos), assim sendo o mito seria uma roupagem com a qual o homem se veste para entrar no mundo exterior. No entanto, Jean-Pierre Vernant considera que o pensamento racional é inseparável do pensamento mitológico, pois no tempo histórico, a gênese do pensamento racional ocidental se dá a partir do pensamento mitológico. Carl G. Jung (1875-1961) segue essa linha ao postular a existência de dois tipos de pensamento; um, consciente, linear e adaptativo, que serviria às funções do ego de adaptação à realidade; e o outro, denominado pensamento circular, mitológico e que ocorreria ao sonhar e fantasiar.

"Mandala" Abelardo
Para Jung a psique consciente é regida pelo pensamento dirigido ou adaptativo, linear; enquanto a psique inconsciente é regida pelo pensamento circular, onírico ou mitológico. Portanto, o ego tem o pensamento voltado para a adaptação à realidade externa; sendo linear e funcionando pelo mecanismo de associação de idéias racionais; o inconsciente, por sua vez, opera pelo mecanismo associativo de imagens mitológicas. Vemos ainda, que o pensamento simbólico, que é fundamental no processo analítico e essencial à individuação, seria a junção das duas formas de pensamento apresentadas anteriormente. Ao alcançar tal junção, o processo de individuação se processa com vigor, pois a função simbólica do inconsciente se torna operante. Um exemplo disso são os sonhos, nos quais em meio a diversos conteúdos que seriam resíduos do dia e aparentes repetições do cotidiano, surgem novas imagens que modificam toda a condução do processo, trazendo algo realmente novo. Essa junção das duas formas de pensamento produz saídas para o impasse existencial. Resulta daí o fato de o mito ser tão vital à existência humana. Há sempre uma mitopoese da psique (produção de mitos pela psique), sendo que os mitos antigos são provenientes do mesmo “tecido” dos contos de fada, sonhos e fantasias. Vemos assim a importância essencial desempenhada pela mitologia na teoria junguiana; isso porque toda teoria psicológica é formulada a partir de um alicerce psicopatológico.
"Mitos" Adelina

A psicanálise de Freud teve a histeria como fundamento psicopatológico, enquanto a psicologia analítica teve a esquizofrenia, cujo conteúdo está profundamente imbricado nos mitos. Jung trabalhou com Eugen Bleuler no Hospital Burgholzi e ao trabalhar com os delírios dos esquizofrênicos descobre mitologemas, ou seja, núcleos de mitos que apontam para uma origem comum e coletiva dos conteúdos delirantes. Tais mitologemas proporcionaram a Jung a percepção do inconsciente coletivo, além disso, fornecer-lhe-ão uma perspectiva simbólica na compreensão dos delírios. A partir dessa perspectiva, o delírio passa a será visto como algo provido de sentido, contrariando a psiquiatria clássica.

Para Jung, todo delírio teria um núcleo compreensível, desde que se parta de um pressuposto simbólico. Além disso, Jung formulou o conceito de compensação, segundo o qual o delírio operaria compensando a atitude da consciência. Tal conceito rege a relação entre os dinamismos conscientes e inconscientes, operando como se fosse mediante uma homeostase psíquica. Essa compensação homeostática é característica geral da função transcendente do si-mesmo, postulada por Jung. O si-mesmo é encarregado de tal função, buscando produzir uma terceira via simbólica a partir da tensão de opostos irreconciliáveis, assim sendo, a função mitopoiética da psique é a função transcendente, pois opera por símbolos. Quando a tensão dos opostos é quase insustentável, o delírio vem apresentar conteúdos de tonalidade impessoal pertencentes ao inconsciente coletivo. Essa é a natureza dos mitologemas.

* Vinícius Romagnolli R. Gomes é psicólogo (CRP 08/16521) e historiador.

Para saber mais:

BOECHAT, Walter. A Mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. São Paulo: Ágora, 2008.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2007.

14 de mar. de 2013

IDENTIFICANDO O TRANSTORNO DE PÂNICO


Ana Maria de Souza Tardelli*

Existem situações que nos provocam muita ansiedade e é muito comum nos considerarmos mais ou menos ansiosos. Quem nunca sonhou com exames escolares e entrevistas de emprego? E quando passamos por algum tipo de situação constrangedora em lugar público? Mas cada um reage de uma maneira frente a situações como essas e a forma como lidamos com o estado de ansiedade é que pode ou não resultar num distúrbio.

"Devetashka caverna" S. Silva
A ansiedade pode se manifestar de formas diferentes. Um dos transtornos mais falados atualmente é o pânico, que pode ser caracterizado como um episódio de ansiedade repentino e de breve duração, apresentando um pico bem definido e podendo durar em torno de uma hora. Devemos entender inicialmente que uma reação de pânico é normal quando existe uma situação que favoreça o seu surgimento, como por exemplo, estar em um local fechado onde começa um incêndio, estar afogando-se ou em qualquer situação com eminente perigo de morte. O pânico passa a ser identificado como patológico quando esta mesma reação acontece sem motivo aparente, de forma espontânea.

É pânico ou ansiedade?

Como é possível sabermos se um momento de ansiedade que nos ocorreu trata-se de um ataque de pânico? Tudo parece estar bem, você se encontra despreocupado, tranqüilo... De repente algo que você não consegue definir, lhe trás uma sensação um tanto ameaçadora, acompanha falta de ar, tontura, fazendo com que se sinta extremamente mal e como se estivesse correndo risco de morte, o que nunca lhe ocorreu antes. As mãos ficam geladas e úmidas, o coração começa a bater de modo acelerado, a respiração fica difícil, rápida e aparentemente insuficiente, dando uma sensação de sufocação. Tudo isto acontece rapidamente, em alguns minutos. Após sentir uma enorme fraqueza e cansaço, chorar, descansar ou dormir um pouco, você volta ao normal, como se nada disso tivesse acontecido.

"Angústia" Siqueiros
Esta é uma experiência terrível para qualquer pessoa, deixando qualquer um confuso e desesperado, sem compreender o que lhe está ocorrendo. O medo de acontecer novamente gera muita angústia e é comum passar a evitar o lugar em que este ataque aconteceu, podendo ser em casa, na rua, dentro de um ônibus, ou em algum outro lugar público. Estas experiências podem vir a ocorrer mais vezes, o que leva muitas pessoas, na tentativa de entender o que está acontecendo, procurar a ajuda de um especialista ou até mesmo um pronto socorro, esperando que o médico lhe informe algum problema no coração, se está tendo um infarto, ou algo parecido... Uma vez descartado o distúrbio orgânico pelo médico e ficar caracterizado como transtorno de pânico, é essencial que se procure auxílios de profissionais da área de psicologia e psiquiatria.

A terapia é fundamental

Esta é considerada uma doença contemporânea, ligada ao quadro emocional, ocasionada geralmente por estresse cotidiano. É uma patologia real e que deve ser tratada com muita seriedade, pois apresenta uma sintomatologia muito intensa e um tanto desagradável. Através da psicoterapia é possível que o paciente compreenda o que lhe está ocorrendo, que situações podem estar gerando esta enorme ansiedade, ajudando-o a superar seus medos.

Quando a psicoterapia é aplicada corretamente e associada com o uso da medicação adequada, consegue-se a melhora acentuada com ausência total dos sintomas na maioria das pessoas, num prazo relativamente rápido.

*Ana Maria de Souza Tardelli (CRP 08/10808) é Psicóloga. Especialista em Clínica de Orientação Psicanalítica e em Gestão Estratégica de Empresas.

29 de jan. de 2013

A CLÍNICA DOS LIMITES


Rogério Thaddeu *
Janet Bongiovanni
A fragilidade das fronteiras que demarcam o psiquismo tem merecido a atenção de alguns psicanalistas nos últimos anos, sobretudo, diante dos desafios colocados à clínica na contemporaneidade, exigindo uma clínica que, no mínimo, repense os alcances e limites de sua prática. Conforme ressalta CHAGNON (2009) A noção de "estado-limite" ou, ainda, de caso-limite (tradução de transtorno borderline) revela, assim, inúmeras preocupações dos psicanalistas. Estes descobriram que pacientes considerados como neuróticos desenvolveram, no percurso da terapia psicanalítica, modos de funcionamento psicótico, regressivos e temporários ou mais duradouros. Partindo desta observação, surgiu a preocupação em resgatar esses pacientes e em encontrar recursos técnicos para tornar o trabalho psicanalítico possível. Houve o surgimento de uma eflorescência de trabalhos, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, tanto na Europa como na América do Norte, a tal ponto que podemos considerar hoje os estados-limite como um novo paradigma: eles são para a psicanálise atual aquilo que a histeria era outrora.
Este artigo visa apresentar a temática dos limites a partir de algumas literaturas francesas, com o objetivo de repensar a clínica psicanalítica na atualidade. Para tanto, nos apoiaremos no percurso desenvolvido tanto em nossa prática clínica como psicoterapeuta quanto no contexto da saúde mental pública, já há algum tempo, sobretudo, diante de pacientes que consideramos “graves”, que no nosso entender, não “respondem” à técnica psicanalítica convencional, exigindo um trabalho árduo e uma análise contínua sobre a transferência e contratransferência. Neste artigo, optamos pela terminologia “estados-limite”, que corresponde mais à perspectiva de André Green, um dos expoentes da psicanálise internacional, bem como, alguns autores brasileiros que se dedicam a esta temática, como Marta Rezende Cardoso e Luiz Cláudio Figueiredo. 
Nikos Gyftakis
De uma forma bastante geral, partindo de nossa experiência clínica, observamos o quanto alguns pacientes, que, encaminhados por psiquiatras ou que já passaram por hospitalizações manifestando uma angústia difusa e flutuante, traços de personalidade infantil, depressiva, masoquista ou narcísica, com tendências impulsivas que frequentemente levam à passagem ao ato, auto ou heteroagressões, condutas perversas e dificuldades consideráveis nas relações interpessoais, parecem transitar em diferentes momentos para uma determinada estrutura psíquica, não se fixando à nenhum “lugar”, ou seja, não se situam na neurose, na psicose e na perversão, embora possam manifestar um modo de funcionamento psíquico que se confunde com determinada estrutura.
Se fizermos uma analogia com os países ou estados de fronteira, é fácil perceber o quanto pode haver riscos, uma vez que na fronteira, os limites embora pareçam estar demarcados, a violência, os excessos parecem coexistir com maior visibilidade. Para aqueles que vivem na fronteira, há sempre o risco de se misturar com um estado ou outro, com um país ou outro, ofuscando assim, a própria identidade.  É curioso notar que os pacientes considerados mais graves, possuem “falhas” na capacidade para simbolizar, na capacidade para diferenciar o Eu do outro. À primeira vista, dependendo do percurso terapêutico ou de um momento particular de sua vida, o paciente “limítrofe”, pode se assemelhar muito à um psicótico ou à um perverso, mobilizando grandemente à contratransferência do analista ou do terapeuta. É importante ressaltar que a própria conceituação do que seja um paciente considerado “grave, difícil” encontra-se profundamente implicada na relação terapêutica, não ocorrendo unicamente nos pacientes “limítrofes.” 
O tema dos casos ou “estados-limite” tem ocupado um lugar de destaque nos debates na contemporaneidade, como ressalta Cardoso (2004), sobretudo no sentido de poder pensar o estatuto das “novas” psicopatologias, bem como, pensar a especificidade do trabalho clínico nos casos onde há uma certa evidência daquilo que estaria além do representável, trabalhar com questões que parecem imprimir uma violência radical, situada fora dos limites de um traumático constitutivo.
Cabe ressaltar que há uma diversidade de modelos e concepções teóricas na abordagem dos estados-limite, que podem ser ordenadas em torno de três eixos: problemática dos limites, problemática da perda do objeto e a problemática edipiana e masoquista conforme apontado por Brusset apud Chagnon (2009).
Saatchi
De uma forma bastante geral, não pretendendo se alongar nestas discussões, elencamos apresentar aqui a primeira problemática dos limites. Nesta problemática, percebe-se a fragilidade ou ainda a fluidez dos limites entre o mundo interno e o mundo externo, fragilidade esta que é fonte de desorganização ou desmoronamento, tornando necessária a implementação de mecanismos de defesa, para assim, fazer algumas trocas entre o interior e o exterior, o sujeito e o objeto. A configuração desse transtorno dos limites se refere ao que Brusset (1999) denomina de patologia da interioridade e um funcionamento psíquico exteriorizado. Com base neste autor, podemos perceber o quanto os sintomas relacionados ao vazio interno crônico, a falta de interioridade e de investimento da atividade psíquica própria explicariam a grande dificuldade destes pacientes em “entrar em contato consigo mesmos”, a dependência do objeto e o desejo de viver a vida do outro.
Os estados-limite mobilizam uma clínica que repense suas possibilidades, bem como seus limites teóricos e técnicos à todo o momento, constituindo-se em um grande aprendizado àqueles que se aventuram por terrenos desconhecidos. Trabalhar na fronteira, implica em riscos e uma grande oportunidade para conhecer outras “línguas”, bem como um intercâmbio rico, caso nossa contratransferência funcione mais no sentido de contribuir para o tratamento e não atrapalhar demasiadamente.

* Rogério Thaddeu é psicoterapeuta, especialista em saúde mental e mestrando em psicologia pela U.E.M. Professor do Depto. de Psicologia da Fafijan. Professor de psicanálise e psicopatologia do Instituto Rhema de Pós-graduação. Autor de No limite das emoções: uma análise sobre as psicopatologias na atualidade.

Para saber mais:
CARDOSO, Marta Rezende Cardoso (Org) Limites. São Paulo: Escuta, 2004
CHAGNOM, J Y. Os estados-limite nos trabalhos psicanalíticos franceses. São Paulo: Revista Psicologia USP. Vol 2 no 2 Abril/Junho, 2009. 
THADDEU, R. No limite das emoções: uma análise sobre as psicopatologias na atualidade. Londrina: Amplexo, 2010.

22 de jan. de 2013

SOBRE AS RELAÇÕES NA ATUALIDADE


Rosane Uchikawa

     Desde a fase mais tenra de nossa constituição como seres humanos, nossa subjetividade é construída através da relação com o outro. A mãe que alimenta é o objeto do desejo, sendo ela que traz o gozo através da satisfação de suas necessidades primárias. Afeto e alimento se unem e a subjetividade passa a ser instaurada, dando forma ao modelo de relação objetal que o bebê levará para sua vida adiante.  
"Mãe e Filho" Picasso (1938) 
      As falhas de continência que ocorrem no processo primário de subjetivação são causadoras de lacunas, que são preenchidas por fantasias infantis, de um ego muito incipiente, e que eclodirão em sofrimentos psíquicos e influenciarão diretamente em nossa maneira de nos relacionar, principalmente no que diz respeito as nossas relações afetivas. 
       Se por um lado, a construção de nossa subjetividade inicia-se na relação mãe-bebê, por outro, ela também vai recebendo contribuições determinantes do meio ambiente em que estamos inseridos. Como “colcha de retalhos”, vamos recebendo informações e estímulos, sendo influenciados e diretamente afetados através desta dinâmica de vinculações.    
       Mudam-se as épocas e, por conseqüência, nossa modalidade de relação também não é a mesma. A mídia e a sociedade em geral, se encarregam de ditar “regras”, influenciando nossa forma de pensar (ou de não pensar!), montando um “palco perfeito” para nossas atuações. O mundo nos oferece um leque imenso de objetos apresentados como ideais, com a promessa de tamponar qualquer vazio existencial com toda eficácia. O que impera é o mandamento do gozar, a gratificação está no consumo imediato e descartável.
Grazi Ruas
     A “falta” que buscamos preencher tem origem em processos psíquicos ligados a lembranças e frustrações primitivas. Se pensarmos nas relações afetivas, buscamos no outro, a solução para esse vazio,  muitas vezes,  contaminados pelos ditos populares de que existe  “uma tampa para cada panela” ou “a outra metade da laranja”, o que é campo fértil para projeções e idealizações, pois na realidade, o que esperamos encontrar  no outro, é um espelho de nós mesmos.   
       Ao mesmo tempo em que somos contaminados com a cultura do descartável, cada vez com mais rapidez, também vamos, num processo inconsciente, atuando na busca de um “outro eu” alguém que seja tão “perfeito quanto”, que supra todas “minhas necessidades”, enfim, o “meu reflexo no lago!”. 
       É nessa ciranda, que as relações vão ficando cada vez mais voláteis, pois, o diferente é refugado, quase que automaticamente trocado por outro. E, se pensarmos que, é justamente o diferente que nos faz pensar sobre nossa condição e nosso modo de existir no mundo, fica a questão: Será que estaríamos vivenciando, na atualidade, uma dinâmica perversa de empobrecimento das relações não só afetivas, mas humanas num todo?
      Todas essas influências em nosso processo de subjetivação nos fazem supor, a necessidade de um maior entendimento desses novos arranjos relacionais que se apresentam. Precisamos então, enquanto profissionais psi, refletir sobre as contribuições que a psicanálise pode trazer para essas novas formas de organização, emolduradas pelo mundo pós-moderno.  

*Rosane Uchikawa é psicóloga (CRP: 08/15427)