"O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam"

Guimarães Rosa

1 de jun. de 2013

AUTOMATISMO MODERNOS, O ESTRANHO E OS ZUMBIS

Daniel Ribeiro Branco*
Ishtar
Cambaleantes, famintos por carne humana e sem qualquer resquício de humanidade ou memória de suas antigas vidas. São estas as características deste personagem imaginário que recentemente passou a protagonizar os enredos a terem sucesso de público na literatura, cinema, jogos eletrônicos e televisão. Para aqueles que têm acompanhado as produções atuais destas mídias, fica fácil perceber a estranha presença dos zumbis.
A influência parece ser tanta que, mesmo na literatura medieval, onde seria difícil imaginar um zumbi, deu-se um jeito de inseri-lo afim, é claro, de satisfazer a maior fatia possível do mercado de tendências. Como nos romances épicos de George R. R. Martin – A Game of Thrones – nos quais os mortos retornam para caçar os vivos durante a noite. Ainda que esta inserção pareça forçada, o autor cede à exigência de que, se a meta é o sucesso de vendas, os mortos-vivos têm que estar presentes na trama.
Seriam estas criaturas resultado deste começo de século? Aqui faz-se necessário um breve levantamento histórico.
A presença dos zumbis ganhou força em filmes de horror dos anos 80, porém já em 1839 há um interessante conto de Edgar Allan Poe (The Fall of the House of Usher), considerado o pai dos gêneros do suspense e horror, que retrata uma situação muito similar, levantando a possibilidade de que os zumbis já “existem” há algum tempo. Esta criatura que ressurge do mundo dos mortos para alimentar-se de carne humana está presente na mitologia de variados locais como Europa, Ásia e África. Sua raiz histórica pode remontar à narrativas de mais de quatro mil anos – a deusa Ishtar, presente na epopeia de Gilgamesh, ameaça abrir os portões do submundo para que os mortos venham alimentar-se da carne dos vivos – e encontra outros similares como os Draugr na cultura proto-germânica, os  Chiang-shih na cultura chinesa e, finalmente, em algumas culturas africanas que chamam de Zumbís Hoodoo estas criaturas que com um feitiço retornam da morte.
Draugr

Sempre que uma produção humana ganha uma forte adesão e perdura por gerações, como têm se mostrado os zumbis e suas variantes, é possível interrogar o que desperta tamanho fascínio. A exemplo do psicanalista Bruno Battelheim com as histórias infantis e de Freud com obras da literatura, um possível caminho é interrogar o que na vida psíquica dos indivíduos estas produções podem estar integrando. Sob esta perspectiva, algumas questões podem ser levantadas.

Uma forma de pensar este fenômeno utilizando o método psicanalítico é interpretar aquilo que expõe além da impressão inicial. Ou seja, dar um “passo” acima do discurso diretamente exposto. Embora vários fatores possam emergir deste tipo de análise, para este ensaio serão levantadas duas questões que parecem destacar-se. A primeira diz respeito a algo que se move de forma automática, impulsionado pela fome, sem pensar: um autômato. Acrescenta-se a isto a representação de um corpo humano, de carne e ossos, mas que já não é vivo internamente, não tem memória, não tem julgamento nem cultura e, portanto, não pode mais ser considerado humano.
Freud, em 1919, escreve O Estranho, trabalho no qual faz uma analogia entre a literatura e personagens e situações capazes de fascinar por sua estranheza, por causar inquietação. Como isto fascina tanto no sentido do estranho, aquilo que nos é Unheimlich (estranho, o título do texto), mas também atrai por manifestar algo que obscuramente move-se no interior psíquico de todos, algo de familiar, algo de Heimlich (a mesma raiz da palavra estranho em alemão serve para familiar). Neste texto, o pai da Psicanálise analisa também, dentre outros personagens, a figura do autômato que assim como os zumbis causariam inquietação também pela dúvida em relação à sua humanidade, uma cópia teoricamente vazia.
Linguagens Formais e Autômatos

Pensando sobre este aspecto, o zumbi parece pertencer à categoria de autômato, assim como também daquele que fascina por trazer aquilo que estaria nas sombras do ser, mostrando algo de seus desejos encobertos. E quais desejos poderiam ser estes?

É interessante pensar que é em algumas produções culturais que desejos proibidos poderiam ser atuados de formas simbolizadas ou, no mínimo, seguras para o indivíduo. Pensando no zumbi como um ser humano, mas que por algum motivo o deixa de ser, o grande mote destas produções está em matar um semelhante – que se assemelha a um humano mas, neste caso, não é – sem as consequências que isto teria: poder matar sem que seja um ato de assassinar. No caso das histórias de zumbis, este desejo poderia ter sua catarse escapando de forma segura às punições internas do superego. Mata-se o simulacro, realiza simbólica e parcialmente um desejo e escapa do risco de qualquer punição.
A própria noção de autômato, pensado como aquele que age sem uma intermediação do pensamento, talvez tenha alguma relação com o indivíduo, pois distante de seu próprio agir, alienado de si, anestesiado de seu próprio mundo interno e que deseja apenas atuar no mundo em busca da satisfação. O filósofo alemão Theodor Adorno usa o termo “máscara mortuária” para definir o sujeito alienado de si, que perambula pela vida, de forma análoga ao que presenciou em campos de concentração nazistas quando o indivíduo se comportava como um morto-vivo até se agarrar à cerca elétrica para morrer; desta forma eles sabiam de antemão que o indivíduo iria para a cerca. É fácil uma analogia ao sujeito alienado de si, que não vai diretamente para a cerca, mas perambula pela vida como um morto-vivo, um autômato.
Portanto além da catarse de desejos e do estranhamento causado por algo de familiar oculto nestas fantasias, o apocalipse zumbi venha denunciar algo sobre o modo de vida da atualidade. E nada mais psicanalítico do que pensar que é a escuta diferenciada do analista que pode oferecer uma saída a esta alienação, ao desejo não dito que compulsivamente se repete, para que talvez se possa agir menos de forma automática e mais de forma integrada.

*Daniel Branco Ribeiro é psicólogo (CRP 08/16136)

Para saber mais:
Freud, 1919: O Estranho;
Freud, 1913. Totem e Tabu;
Adorno, 1944: A Dialética do Esclarecimento;

Poe, 1832: The Fall of the House of Usher.

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