"O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam"

Guimarães Rosa

20 de mar. de 2013

MITO NA OBRA DE CARL G. JUNG


Vinícius Romagnolli R. Gomes*

Carlos Pertuis
O mito se faz presente na sociedade humana desde a mais remota antiguidade. Nas sociedades antigas pode-se perceber a presença da mitologia na organização cultural, na vida individual e na coletiva, tanto nos costumes como na religião. O mais antigo épico mitológico preservado é a Epopéia de Gilgamésh (aproximadamente 2.750 a.C), a qual trata da história do rei Gilgamesh, da antiga cidade de Uruk. O mito narra as peripécias de Gilgamesh (constituído de dois terços divinos e um terço humano) e de seu companheiro Einkidu, que veio dos céus num cometa. Ambos desafiam a poderosa deusa Ishtar, e Einkidu é morto. Gilgamesh busca a imortalidade e tenta descer ao mundo dos mortos para resgatar a alma de Einkidu. O mito de Gilgamesh elabora assim as questões religiosas da morte, da imortalidade e da finitude do ser humano.

Como podemos ver, o mito está associado ao misterioso e ao que não pode ser expresso pelo discurso lógico da consciência (mundo do logos), assim sendo o mito seria uma roupagem com a qual o homem se veste para entrar no mundo exterior. No entanto, Jean-Pierre Vernant considera que o pensamento racional é inseparável do pensamento mitológico, pois no tempo histórico, a gênese do pensamento racional ocidental se dá a partir do pensamento mitológico. Carl G. Jung (1875-1961) segue essa linha ao postular a existência de dois tipos de pensamento; um, consciente, linear e adaptativo, que serviria às funções do ego de adaptação à realidade; e o outro, denominado pensamento circular, mitológico e que ocorreria ao sonhar e fantasiar.

"Mandala" Abelardo
Para Jung a psique consciente é regida pelo pensamento dirigido ou adaptativo, linear; enquanto a psique inconsciente é regida pelo pensamento circular, onírico ou mitológico. Portanto, o ego tem o pensamento voltado para a adaptação à realidade externa; sendo linear e funcionando pelo mecanismo de associação de idéias racionais; o inconsciente, por sua vez, opera pelo mecanismo associativo de imagens mitológicas. Vemos ainda, que o pensamento simbólico, que é fundamental no processo analítico e essencial à individuação, seria a junção das duas formas de pensamento apresentadas anteriormente. Ao alcançar tal junção, o processo de individuação se processa com vigor, pois a função simbólica do inconsciente se torna operante. Um exemplo disso são os sonhos, nos quais em meio a diversos conteúdos que seriam resíduos do dia e aparentes repetições do cotidiano, surgem novas imagens que modificam toda a condução do processo, trazendo algo realmente novo. Essa junção das duas formas de pensamento produz saídas para o impasse existencial. Resulta daí o fato de o mito ser tão vital à existência humana. Há sempre uma mitopoese da psique (produção de mitos pela psique), sendo que os mitos antigos são provenientes do mesmo “tecido” dos contos de fada, sonhos e fantasias. Vemos assim a importância essencial desempenhada pela mitologia na teoria junguiana; isso porque toda teoria psicológica é formulada a partir de um alicerce psicopatológico.
"Mitos" Adelina

A psicanálise de Freud teve a histeria como fundamento psicopatológico, enquanto a psicologia analítica teve a esquizofrenia, cujo conteúdo está profundamente imbricado nos mitos. Jung trabalhou com Eugen Bleuler no Hospital Burgholzi e ao trabalhar com os delírios dos esquizofrênicos descobre mitologemas, ou seja, núcleos de mitos que apontam para uma origem comum e coletiva dos conteúdos delirantes. Tais mitologemas proporcionaram a Jung a percepção do inconsciente coletivo, além disso, fornecer-lhe-ão uma perspectiva simbólica na compreensão dos delírios. A partir dessa perspectiva, o delírio passa a será visto como algo provido de sentido, contrariando a psiquiatria clássica.

Para Jung, todo delírio teria um núcleo compreensível, desde que se parta de um pressuposto simbólico. Além disso, Jung formulou o conceito de compensação, segundo o qual o delírio operaria compensando a atitude da consciência. Tal conceito rege a relação entre os dinamismos conscientes e inconscientes, operando como se fosse mediante uma homeostase psíquica. Essa compensação homeostática é característica geral da função transcendente do si-mesmo, postulada por Jung. O si-mesmo é encarregado de tal função, buscando produzir uma terceira via simbólica a partir da tensão de opostos irreconciliáveis, assim sendo, a função mitopoiética da psique é a função transcendente, pois opera por símbolos. Quando a tensão dos opostos é quase insustentável, o delírio vem apresentar conteúdos de tonalidade impessoal pertencentes ao inconsciente coletivo. Essa é a natureza dos mitologemas.

* Vinícius Romagnolli R. Gomes é psicólogo (CRP 08/16521) e historiador.

Para saber mais:

BOECHAT, Walter. A Mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. São Paulo: Ágora, 2008.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2007.

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