"O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam"

Guimarães Rosa

29 de fev. de 2012

FOME DE QUÊ?


 Giordane Andrade de Paula*
A anorexia é um transtorno do comportamento alimentar onde a pessoa limita a sua alimentação, com o propósito de perder peso, devido ao medo de engordar e se tornar obesa a qualquer momento. Existe uma perturbação na percepção do esquema corporal, da auto-percepção da forma e/ou do tamanho do corpo, sendo a recusa alimentar apenas uma conseqüência dessa distorção doentia do esquema corporal.
A anorexia é uma doença e pode ser fatal, o índice de mortalidade varia entre 4% e 30%, levando em consideração a idade de início do quadro, a precocidade do diagnóstico e o tratamento específico e especializado para cada paciente. A anorexia aparece, preferencialmente, em adolescentes e adultos jovens entre 10 e 30 anos de idade. A predominância da anorexia em mulheres é muito significativa, mas em hipótese alguma pode descartar a possibilidade de ocorrência no sexo masculino.
Estudos e pesquisas definem dois tipos de anorexia:
Tipo Restritivo: a perda de peso é conseguida principalmente através de dietas, jejuns ou exercícios excessivos.
Tipo Compulsão Periódica/Purgativo: episódios de compulsão e/ou purgação (indução de vômito ou uso indevido de laxantes e diuréticos) além das dietas e exercícios.
Pesquisas mostram alguns critérios para o Diagnóstico da Anorexia: perda de peso e recusa em manter o peso dentro do esperado (abaixo de 85% do peso mínimo normal adequado a idade e altura); existe um medo intenso de engordar, mesmo estando abaixo do peso normal; perturbação no modo de vivenciar o peso e forma do corpo, influência indevida do peso sobre auto-avaliação e negação do baixo peso; Amenorréia pos três ciclos menstruais consecutivos. (DSM-IV, 2000)
Para que se desenvolva o transtorno é necessário uma associação de características genéticas, psicológicas, culturais e familiares. Na maioria dos casos, existe um desencadeador do processo como dietas, situações de separação ou alguma perda.
Na sociedade em que vivemos, o corpo que as pessoas tem, que possui sua própria beleza, é desvalorizado quando não está próximo ou igual aos corpos magros e muitas vezes doentes, que são expostos diariamente nas passarelas, televisão, revistas, internet, etc. Assim fica exposta a dificuldade que as pessoas enfrentam para gostar de seus próprios corpos. A alimentação torna-se uma idéia fixa para a pessoa que possui anorexia, o medo de engordar é tão intenso que a pessoa só pensa em comida e em não comer, assim ela cria alguns rituais alimentares que acabam sendo rígidos e agressivos com seu próprio corpo e mente.
A Anorexia apresenta associações com transtorno de humor, transtorno de ansiedade e transtorno com algum tipo de substância química. A identificação das associações é extremamente necessária, para que o tratamento seja adequado a cada pessoa.
As pessoas com anorexia geralmente tem muita informação sobre alimentação, utilizam o corpo e a comida como meio de expressão, geralmente falam sobre calorias, exercícios físicos, forma de partes do corpo, dietas e tudo o mais ligado à corpo e alimento. Porém, quando o assunto está relacionado aos sentimentos, ou às trocas afetivas e relacionamentos em si, as dificuldades começam aparecer.
A anoréxica está tão envolvida com seu corpo e com sua alimentação, que “perdeu” a forma saudável de fazer contato com o meio. As suas relações são superficiais, não existindo um contato genuíno. Inclusive o contato dela com o próprio corpo está disfuncional, já que ela se vê em uma forma não “real”, distorcendo a própria imagem.
A família tem grande importância neste processo, já que é um dos principais meios onde a pessoa está inserida. A pessoa que está com anorexia não pode ser vista apenas como doente, pois o transtorno é apenas uma parte de seu todo que está se manifestando em função de alguma necessidade. Portanto, a relação disfuncional da pessoa que possui anorexia com a comida é apenas um sintoma de um conflito ou sofrimento psíquico maior.
O papel do Psicólogo neste processo não é focado no ganho de peso, nas causas do transtorno e na melhora imediata, mas é de instrumento para que a pessoa comece se conhecer, possa tomar consciência de quem ela é, do que deseja e ser capaz de tomar posse de sua vida, percebendo tanto suas possibilidades quanto as conseqüências de suas escolhas. Com este processo de auto-conhecimento pode se criar uma forma mais saudável de expressão. Quando a pessoa conseguir falar de alegrias, tristezas, medos, ansiedades, angústia, desejos, dúvidas, certezas, amor, ódio e conseguir identificar cada um destes sentimentos, estará encontrando um modo mais funcional e criativo para viver e se relacionar.
Uma das principais atitudes de quem quer ajudar uma pessoa com transtorno alimentar deve ser a aceitação! Independente das explicações e justificativas em relação à origem e manutenção da doença deve-se acolher e aceitar a pessoa como ela é sem julgamentos e interpretações. A aceitação promove uma relação verdadeira e de confiança, proporcionando assim que a pessoa aprenda a estabelecer contatos saudáveis, de forma criativa com o mundo e com ela mesma.
* Giordane Andrade de Paula é Psicóloga (CRP 08/10305)

23 de fev. de 2012

A OPINIÃO DO COACHEE É O QUE IMPORTA.

Renan Freitas*
        O ambiente das Empresas Júnior proporciona incentivos para sempre inovar e atrair tudo o que é novo e aplicável para agregar a gestão da organização. No ano passado, nós realizamos na ADECON um projeto para o desenvolvimento e a implementação do Coaching como ferramenta para auxiliar o desenvolvimento de competências. Essa ferramenta foi formulada para que os próprios diretores a aplicassem em seus subordinados.
O Coaching tem argumentos suficientes para mostrar que é a salvação da sua empresa, embasando o desenvolvimento das pessoas. No entanto, o que é preciso ter em mente é que mais importante do que a iniciativa de implantar a ferramenta, é a aceitação e a disposição que as pessoas precisam ter para mudar e dar continuidade ao processo.
A implantação da ferramenta na empresa não só gerou uma mudança na nossa cultura, mas também tirou as pessoas da sua zona de conforto. Anteriormente nós já desenvolvíamos metas para os resultados da avaliação de desempenho (realizada trimestralmente), mas não havia uma ferramenta como o coaching para atingir os objetivos.
No final do ano passado, os diretores passaram a realizar um acompanhamento mais próximo dos membros da empresa se utilizando da nova ferramenta. O resultado foram sessões concisas no começo, mas com o passar do tempo, a procura diminuiu e no final do ano tal ferramenta não estava mais sendo aplicada. O que se percebeu foi que a ferramenta não tinha a flexibilidade necessária para a nossa cultura organizacional e que precisamos de algo que partisse do coachee, ou seja, que não tivesse sessões fixas com tempos determinados e que ela trouxesse aplicabilidade à rotina da empresa, algo similar ao conceito de líder-coach. Enfim, tornou-se um projeto para ser desenvolvido em 2011.
Por fim, podemos considerar que quando o coaching é aplicado ao ambiente organizacional (assim como qualquer ferramenta da Gestão de Pessoas) ele precisa ter a aceitação das pessoas, pois são elas quem irão executar e receber. O coaching é uma ferramenta que traz ótimos resultados, mas que merece muita atenção para que não caia no esquecimento.

*Renan Freitas é aluno de Administração e membro da ADECON Junior Consultoria.
Para saber mais:
“O Líder-Coach, Líderes criando líderes” do autor Rhandy Di Stefano.    

15 de fev. de 2012

UMA REFLEXÃO SOBRE A VERDADEIRA BELEZA

Fernanda Rossi*
Refletir sobre a beleza é um campo bastante amplo, pois há beleza em tudo: na natureza, nos animais, nos homens, na arquitetura, na ciência, na literatura e assim por diante. Esta reflexão se centrará na beleza humana. O que também não é tarefa fácil, tendo em vista, que se precisa levar em conta que a beleza depende de aspectos sociais, históricos, culturais e individuais. E está relacionado tanto a questões físicas quanto psicológicas. Mas então o que faz uma pessoa ser bela? Pode ir alem do físico, ou acaba nele?
No aspecto social a beleza está ligada a um padrão aceitável a uma época, houve o belo como do obeso tão bem retratado nas pinturas de Botticelli, ou do corpo musculoso como das esculturas de Da Vinci, até chegar na magreza da moda tão bem representada por Kate Moss. Assim o conceito de beleza foi e irá se modificando ao longo da história. Havendo em cada época um modelo fortemente definido.
O que faz parte do aspecto histórico, que é fortemente determinado pelas questões econômicas. Aonde, contraditoriamente, a oferta de alimento vai à contra mão das formas corporais valorizadas. Quer dizer, em épocas nas quais há pouca oferta de alimentos, a imagem feminina acima do peso é que indica poder, enquanto que nos períodos de abundancia de comida, como atualmente, o ser magro é o representante tanto de autodisciplina quanto sucesso (Liveira e Hutz, 2010).
Alem do fato da beleza como diferença da maioria. Quando o imperativo de uma época era o trabalho braçal que gasta muita energia, ser obeso e de pele alva era o representante maior da superioridade e realeza. Com o advento da percepção de que a obesidade é perigosa para a saúde, ser magro se tornou o alvo da riqueza. Pois no século XX, com as pesquisas científicas a obesidade foi percebida como doença, classificada até mesmo pela Organização Mundial da Saúde. E estar magro significa pagar um preço por isso, que vão desde os cuidados com alimentação, passando pelos exercícios físicos até as cirurgias plásticas (Freitas, Lima, Costa e Lucena Filho, 2010). Algo nem um pouco barato.
Há também a beleza cultural, no Japão, por exemplo, a pele bem clara é considerada a mais bonita, enquanto que aqui no Brasil é a pele bronzeada considerado o desejado. No Oriente, a Índia como representante maior, a maquiagem forte e bem marcada é o ápice do belo. Enquanto que na Europa a maquiagem discreta é considerada o ideal. Desta forma, dependendo de cada região a beleza e a forma de destacá-la também serão diferentes.
Quanto mais então no aspecto individual. Entra-se na idéia de que a “beleza depende dos olhos de quem vê”. O que é muito único para cada um. Há de se levar em conta que de acordo com a biologia evolutiva a beleza é resultado da união de simetria, harmonia e unidade, assim o belo é entendido por todos como sendo belo (Macedo e Sandoval, 2011). Como por exemplo, a imagem da rainha egípcia Nefertiti é, mesmo depois de 3000 anos, considerada ainda lindíssima. Então, o belo pode ser definido como igualmente admirado por todos. Contudo, uma pessoa pode se interessar e achar belíssima uma mulher que outra pessoa não acharia. Ou seja, há o belo considerado socialmente como real, e o belo que se destaca individualmente para cada um.
O que indica que a beleza vai além do constructo social. Há nele questões psicológicas do que cada pessoa desperta em nós, que podem ser os traços do rosto, o tipo de corpo, o olhar, o jeito de caminhar, o estilo, enfim, detalhes que fazem toda a diferença.
Por este aspecto a beleza deixa de ser apenas física para tornar-se parte da existência de cada um. Algo que se têm muito mais possibilidades de esculpir. Pois leva em conta outros atributos tais como a história de vida de cada um, a educação, a cultura, a auto-estima, o jeito de ver a vida, o estilo, os cuidados consigo mesmo, enfim, uma variedade tão grande que torna cada um tão único e belo ao seu modo.

Num mundo tão voltado para o externo, pensar em beleza dentro desta visão pode parecer um contra-senso, mas quem sabe seja o único modo possível de encontrar satisfação. Pois o padrão de beleza vigente tem cobrado um alto preço principalmente das mulheres. Transtornos alimentares como bulimia e anorexia acontecendo cada vez mais cedo. Crianças mais preocupadas com o corpo do que o brincar (Oliveira e Hutz, 2010). O envelhecimento visto como negativo, inadequado, indesejado e que deve a todo custo ser evitado (Moreira e Nogueira, 2008). Como se isso fosse possível!
O tempo é implacável, ele chega e não pede licença! Por mais belo que o corpo seja, se a mente não for saudável não é suficiente para manter a chama de um relacionamento amoroso vivo, laços familiares reais e amizades duradouras.
Os aspectos psicológicos são os únicos que nos acompanham durante toda a vida e ao contrário do físico este pode ficar mais belo com o passar do tempo.
Como influenciá-lo então?
Primeiramente olhando para sua auto-estima. Auto-estima é o juízo de valor que um indivíduo tem de si mesmo. Sua construção se inicia na mais tenra idade e influencia por toda a vida o relacionamento consigo mesmo e com as pessoas ao seu redor. Diante de desafios é este atributo emocional que possibilita confiança, força e determinação ou o contrário de tudo isto.
Uma avaliação rápida da auto-estima pode ser feito com o tentar descrever 10 características suas positivas e dez negativas. Normalmente se esbarra em não saber o que escrever, principalmente nas positivas. É tão fácil e rápido se julgar, enxergar os defeitos. Até mesmo quando se recebe um elogio, poucas pessoas agradecem, a maior parte junto com o agradecimento vem uma justificativa. Por exemplo, ao elogio de “que linda sua blusa” vem a resposta “paguei tão barato” ou “é tão velha” e assim por diante.
O fortalecimento deste atributo está relacionado ao autoconhecimento. A saber, quem você é, do que é capaz, quais suas limitações e poder gostar de si neste completo. É ser tolerante consigo mesmo, se aceitar como é. Não significa fechar os olhos para os defeitos, mas se perdoar quando cometê-los. É sair da roda-viva de exigências e cobranças que o mundo faz – cuide da casa, dos filhos, do conjugue, da carreira, dos amigos, do corpo e esteja feliz o tempo todo – para entrar na realidade de que não é possível fazer tudo isto. Há que escolher o que é prioritário e nisto focar, deixar o restante para segundo plano e fazer no seu ritmo, no seu tempo. Ao colocar os compromissos nesta dimensão fica possível encontrar o prazer de viver. Pois os comportamentos deixam de ser mecânicos e necessários, para se tornarem escolhas.
* Fernanda Rossi é psicóloga clínica de orientação Psicanalítica, formada na primeira turma de psicologia do CESUMAR. Especialista em Psicologia Clínica, mestre em Psicologia da Saúde (UMESP-SP), e com formação em observação de bebês pelo IPPIA.  

Para saber mais:
FREITAS, Clara Maria Silveira Monteiro de; LIMA, Ricardo Bezerra Torres; COSTA, António Silva e  LUCENA FILHO, Ademar. O padrão de beleza corporal sobre o corpo feminino mediante o IMC. Rev. bras. educ. fís. esporte (Impr.) [online]. 2010, vol.24, n.3, pp. 389-404. ISSN 1807-5509.
LIVEIRA, Leticia Langlois  e  HUTZ, Claúdio Simon. Transtornos alimentareso papel dos aspectos culturais no mundo contemporâneo. Psicol. estud. [online]. 2010, vol.15, n.3, pp. 575-582. ISSN 1413-7372.
MOREIRA, Virgínia  e  NOGUEIRA, Fernanda Nícia Nunes. Do indesejável ao inevitávela experiência vivida do estigma de envelhecer na contemporaneidade. Psicol. USP [online]. 2008, vol.19, n.1, pp. 59-79. ISSN 0103-6564.
MACEDO, Daniela e Sandoval, Gabriella. O QI da beleza. Revista veja. 12 de janeiro, 2011. Pg 79-85. 

8 de fev. de 2012

O “EFEITO SOMBRA”

Maria Cristina Recco*
Em algum momento da vida, nos vemos em busca de algo que não sabemos exatamente o que é, mas sabemos que é nosso... sabemos quando algum detalhe que encontramos faz parte desta busca, seja numa conversa, um filme, em um livro, um momento espiritual, uma reflexão, sonho, cursos, ou principalmente, em um encontro analítico... é algo que tem a ver conosco mesmo. Este é um princípio de luz onde através dele, tentamos conhecer a nossa alma. Porém, onde tem luz também tem sombra. Conhecer a alma, também supõe conhecer nossos aspectos sombrios ou obscuros da nossa psique e, uma vez que alguém ouve falar da sombra, já não pode mais negar sua existência. Todos nós somos atacados por nossos próprios impulsos sombrios em nossas mentes ou em nossos atos. Somos possuídos por aspectos negativos da nossa alma, uma vez que todo bem e todo mal perfazem a natureza humana. Em busca dessa alma como um todo e de encontrar o sentido da vida, caminhamos para nossa interioridade, experimentando conhecimentos inéditos.
O Efeito Sombra é título de um livro de Deepack Chopra (recomendo que corram às livrarias, já li e indiquei a vários pacientes), e também já é filme, que entrará em cartaz brevemente nos cinemas. Ele retrata ricamente, através de exemplos, sobre o conceito junguiano de sombra.  Na análise da estrutura psíquica, deparamos com vários arquétipos (registros do inconsciente coletivo, referente a imagens arcaicas típicas ou primordiais), entre eles, a sombra.
A sombra refere-se a conteúdos reprimidos como frustrações, omissões, vergonhas, medos, que guardados, tomaram dentro de nós formas negativas e potencializaram-se, sendo refletidos em nossos comportamentos, como atos indevidos ou com proporções indevidas. São as compulsões, “defeitos de caráter”, tidos como comportamentos doentios, que atuam internamente, através de impulsos sem freios, sem limites,sem equilíbrio. E que tantos estragos causam na vida. Agressões, estupidez, atos invasivos, desrespeito a alguém ou a natureza...desde graus leves aos mais altos. Um moralismo hipócrita é carregado de sombras profundas...o marido que fica vendo pornografia enquanto a esposa  prepara o jantar,  é sombra; as cadeias estão cheias de histórias onde a sombra atuou e a pessoa cometeu um crime.
A sombra é escura e misteriosa. E pode ser perigosa. É tudo o que de nós procuramos esconder... artimanhas, estratégias, jogos de relacionamento, tudo o que tenta mostrar o que se deseja que seja visto, em detrimento de que a verdadeira intenção apareça. Alí também está a sombra. O perigo maior está em ignorá-la. Não se pode lutar com a sombra, mas sobre ela pode-se jogar luz. Aí está um grande desafio, confrontar nossos aspectos sombrios e torná-los luz internamente. A consciência do que somos nos humaniza; nos desenvolve.
Integrar a sombra é ficar um pouco mais inteiro, encontrar nosso elo perdido... afinal, só podemos crescer  para o lado que ainda não foi desenvolvido.
*Maria Cristina Recco é psicoterapeuta junguiana (CRP 08/1453)





1 de fev. de 2012

O (DES) BRINCAR NA CULTURA DO CONSUMO: Um olhar sobre o brincar na cultura contemporânea a partir de Leontiev


Jovani Antonio Secchi*
Dra. Regina Perez Christofolli Abeche**
Esse texto é fruto de uma especialização em Teoria Histórico-Cultural pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Analisa o documentário “Criança, a alma do negócio”, a partir de um valor disseminado pela cultura contemporânea: o consumo. Tem como referencial teórico Leontiev, autor este que se fundamenta na teoria do marxismo. Para tanto, apresenta os principais conceitos da teoria de Leontiev acerca do desenvolvimento do psiquismo. Em seqüência  aborda sobre a cultura contemporânea e um de seus principais valores: o consumo, a partir da perspectiva dos autores Z. Bauman e D. R. Dufour.  E, por fim, descreve de forma sucinta, o documentário “Criança, a Alma do Negócio”, seguido de uma análise.
     Para Leontiev (2004), há diferenças significativas entre os conceitos de atividade, ação e operação. Na atividade o motivo coincide com o objetivo da realização daquela ação, e mais, ela é responsável pelas principais mudanças nos processos psíquicos da criança; já na ação o motivo não coincide com o objetivo, consiste em um fim imediato, a ação surge e se realiza. E, a  operação,  consiste no modo de execução de uma ação. No entanto, há uma relação entre eles, ao se estimular há uma transformação/mudança de um para o outro, ou seja, ao se transferir o motivo da atividade para a ação, e da ação  para uma nova forma de operação, cria-se uma nova atividade, que irá possibilitar o desenvolvimento psíquico e, consequentemente, a mudança de estágio da criança.
Já, em relação à cultura contemporânea, para Dufour (2001, p.2), o que a caracteriza é a falta de um “enunciador coletivo”, de um “em nome de”, que sirva de parâmetro/referência. Com isso, tem-se um sujeito obrigado a se constituir por si próprio, sem referenciais para legitimar e orientar suas escolhas. Nesse contexto, o consumismo tem sido disseminado como um dos principais valores. De acordo com Bauman (2001), o objetivo do Mercado vigente consiste em transformar o indivíduo em um eterno consumidor, alienando-o de sua capacidade de refletir sobre o objetivo e objeto de seu consumo. Além disso, a mercadoria tem de ser renovada constantemente, a fim de torná-la em um inesgotável atrativo ao consumidor. Por fim, o autor expõe que o consumo não está voltado para a satisfação das necessidades físicas, mas sim para uma apropriação da imagem representada no produto, fazendo com que o consumo seja alimentado por ilusões de um desejo já capturado pelo mercado.
Em decorrência desse cenário, de acordo com Abeche (2010) uma subjetividade possível de ser construída é aquela que já se encontra capturada em sua interioridade, ou seja, o que pertence à narrativa pessoal encontra-se  desvalorizado. Isso ocorre em decorrência de todos os discursos de legitimação, que são transmitidos pelas gerações anteriores e que passariam por um crivo para discernir e decidir sobre mudanças, terem sido capturados pelos ditames da sociedade do consumo e do espetáculo.
O documentário “Criança, a alma do negócio”, produzido por Maria Farinha, Marcos Nisti, Estela Renner, aborda a acerca da transformação das crianças em consumidoras. Mostra claramente o quanto que a mídia, de forma insistente, age sobre a mente das crianças a fim de implantar o desejo do consumo. Além disso, fica claro, nas falas do vídeo, a manipulação realizada nas crianças, para transformá-las em consumidoras, ao mesmo tempo em que consiste também em uma forma estratégica com o escopo de obrigar os pais a comprarem/consumirem os produtos das propagandas.
O que se constata no documentário, é que a brincadeira acaba por ser suplantada pelo consumir, portanto, não se teria mais o brincar que proporcionaria a dialética entre operação, ação e atividade. Logo, o consumo teria como seu fim maior a própria condição de apropriar-se da imagem representada no produto. Destarte, o consumo pode ser entendido como uma ação, pois, na ação, o motivo não coincide com o objetivo da realização daquele ato; assim a finalidade de se consumir equivale a  apropriar-se da imagem que está representada no produto, ou seja, um objetivo imediato.
      O que move a ação de consumir é a ideologia de que, ao tomar posse de um determinado objeto (qualquer objeto), o indivíduo estaria se apropriando de algo que lhe daria a condição de completude, tendo a ilusão de que, ao adquirir um produto, se satisfaria de forma plena em seus desejos. No entanto, como a sensação de completude não ocorre, após apropriar-se do objeto da propaganda, o consumidor percebe que o produto adquirido não foi suficiente para aplacar seus anseios. Assim, o indivíduo volta a consumir na esperança de que, na próxima aquisição, terá a tão almejada sensação de completude. Cria-se, assim, a partir dessa ideologia, um indivíduo desejoso para comprar; desse modo, estabelece-se o consumismo como uma ação, pois o motivo que lhe move para o consumo não vai estar no objeto consumido, com isso, o consumidor jamais conseguirá alcançá-lo.
       Portanto, o consumo, como representado nas falas do documentário, não pode ser considerado uma atividade, pois não tem um fim em si mesmo, ou seja, o motivo não coincide com o objetivo da realização daquela ação. Além do mais, pelo consumismo, exclui-se a dialética entre ação, atividade e operação, pois não há uma transferência de motivo da atividade, o qual permita transformar o motivo da ação; portanto, não se estabelece uma nova atividade. É justamente pelo fato de o consumismo excluir o processo dialético, o qual permitiria o desenvolvimento psíquico do sujeito, que a mídia tem transformado o ato de consumir na mais nova brincadeira de crianças, ou seja, para a contemporaneidade, a brincadeira infantil se resume em consumir.
          O que se constata no documentário é que, a partir dessa transformação do consumo em brincadeira de criança, exclui-se, em grande parte a presença do educador, isto é, os infantes passam a ser detentores de um conhecimento que se resume aos produtos a serem consumidos. Assim, com a exclusão do educador, a mediação, por meio da qual novas regras  seriam apresentadas a criança, possibilitando o desenvolvimento do seu psiquismo e, consequentemente, o avanço de estágio, não aconteceria.
      O valor que predomina, no universo da criança, nessa contemporânea sociedade do consumo consiste em que a apropriação do produto torna-se a  forma prevalente de a criança poder se diferenciar dos outros e construir sua  subjetividade/singularidade. Para isso,
não se permite que se pense, reflita sobre a atual situação e, para manter essa condição, tudo é dado de forma pronta e acabada, como se esta realidade não fosse construída. Sendo assim, tais condições não promovem um desenvolvimento a contento do psiquismo e, tão pouco, ocorreria uma adequada mudança nos estágios do desenvolvimento da criança, o que possibilitaria a sua construção subjetiva.
          Daí a importância do indivíduo conhecer o seu passado, o seu significado, para saber  a sua contribuição na construção da sua singularidade, do seu desejo, para se desalienar do desejo do outro, do outro hoje representado não mais pelos familiares, pela tradição, mas deste outro representado pelo deus mercado, também guardião do cárcere no qual os desejos capturados estão aprisionados. O passado, o presente não questionado, não recordado e não elaborado se torna fonte sofrimento e de comportamentos muitas vezes indesejados. Na atualidade percebe-se que este passado negado, não levado em consideração, digno somente do esquecimento torna o ser humano aberto para repetir e reproduzir uma série de comportamentos não desejáveis, fontes de sofrimento.

Para saber mais:

ABECHE, Regina Perez Christofolli. A que resistir? E o que criar? Reflexões sobre a (des) construção das subjetividades na contemporaneidade. In: BONAMIGO, I. S.; TONDIN, C. F.; BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.BAUMAN , Z.  O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998._________________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001._________________. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.LEONTIEV, Aléxis. O Desenvolvimento do Psiquismo. 2a. ed. São Paulo: Centauro, 2004.