Diogo Luiz Santana Galline*
À primeira vista, o título acima conduz o despercebido leitor a cogitar um erro gravíssimo de redundância por parte do autor. “Como posso escutar aquilo que não ouço?”, podem questionar. Outros chegarão à filosófica conclusão de que “ouço, logo escuto”. Por fim, alguns dirão que ambos os termos são e sempre serão sinônimos, desviando a conversa para o resultado futebolístico do final de semana e encerrando, de forma drástica, a possível discussão. Embora sejam vistas por muitos como semelhantes, há significantes diferenças entre as duas palavras. Segundo o Dicionário Michaelis, ouvir remete a “dar ouvido às palavras de; perceber pelo sentido do ouvido”, ao passo que escutar refere-se a “prestar atenção para ouvir; dar atenção à; sentir; perceber”. Em suma: enquanto ouvir está ligado às funções auditivas, escutar envolve-se primordialmente com a atenção (e conseqüente compreensão) àquele que nos dirige a palavra.
Um breve caso auxiliará na elucidação dos conceitos. Certa vez, uma mulher retornou aflita de seu trabalho, necessitando dialogar urgentemente com o marido. Ao adentrar em casa, notou o esposo sentado no sofá, lendo seu respectivo jornal. Não demorou muito para iniciar seu desabafo, de forma atropelada e desorganizada. Qual foi a sua surpresa ao ser interpelada pelo marido da forma mais superficial possível, com fáticos “aham”, “que mais” e “certo”, mas sem desgrudar os olhos das páginas esportivas um minuto sequer. Tornando-se ainda mais desesperada, não se agüentou e arrancou o jornal das mãos do homem que, assustado, perguntou: “O que está acontecendo?”. “Acontece que eu estou há quase meia hora lhe falando das idéias malucas de nossa filha, que deseja viajar com o namorado para uma praia deserta, e você continua com essa expressão de que nada está acontecendo. Será que você está me escutando?”. Certamente a resposta para esse caso é “não”, pois ele realmente não escutou o que estava sendo dito. É possível que seu canal auditivo tenha captado as ondas sonoras provindas da voz da esposa, transmitindo o estímulo para o próprio organismo. Todavia, dificilmente tal estímulo transformou-se em alguma mensagem efetiva, afinal, nenhuma atenção foi desprendida pelo sujeito para torná-la consciente.
Pode parecer um exemplo distante, contudo, está mais presente no dia a dia das pessoas do que se imagina. Basta refrescar da memória a última vez que se encontrou com aquele amigo indesejado e pouco quisto, vulgo chato: é bem provável que, em meio a tanto desinteresse em manter a conversa, o interlocutor tenha se utilizado apenas dos ouvidos (quiçá respostas monossilábicas), sem envolver a escuta propriamente dita ou até mesmo, o mínimo de atenção. Outro exemplo dá-se costumeiramente nas salas de aula, em disciplinas que não interessem tanto a determinados alunos. Embora estejam olhando e ouvindo a figura do professor, seus pensamentos encontram-se há milhas de distância.
O movimento de escutar não é tão simples quanto se demonstra ser. Na atual sociedade, valoriza-se a máxima produção em detrimento ao menor tempo possível. Desta forma, pouco tempo é dedicado ao exercício de escuta, uma vez que, na lógica pós-moderna, significa “perda de tempo”. Ao invés de desprender de alguns minutos para dedicá-lo ao entendimento do próximo, prefere-se criar relações objetivas, mas superficiais, nas quais o contato está baseado mais no que cada um tem a dizer, ou seja, um “monologo dirigido”, ao invés de uma formação de diálogo.
Para o profissional da psicologia, a capacidade da escuta faz-se estritamente necessária para o andamento de suas atividades. No que condiz à prática clínica, espera-se que terapeuta e cliente estabeleçam um vínculo de confiança, sabendo-se que só será criado caso exista uma ligação verdadeira entre ambos. Diversos fatores colaboram para essa formação, dentre eles a escuta atenta do psicólogo para o “corajoso” que ali se encontra, expondo fragilidades muitas vezes inimagináveis de serem relatadas para outros ao seu redor. O cliente procura alguém que disponha de dedicação suficiente para compreender suas angústias, que o escute empaticamente e que, diferentemente de muitos, possa enxergar suas dificuldades com respeito e aceitação. Será somente dessa maneira que se conseguirá chegar àquilo que Martin Buber denominou de relação dialógica, isto é, um relacionamento verdadeiro formado por duas pessoas (eu-tu). Ambas encontram-se presentes em sua totalidade, dotadas de comunicação genuína e sem reservas. Desta forma, abrem-se imensas possibilidades de interação humana, promovendo o processo terapêutico autêntico.
Diante do que foi apresentado, conclui-se a grande importância que o processo da escuta assume na vida dos seres humanos. É preciso ir muito além do simples ato de ouvir. Faz-se necessário, antes de tudo, esforçar-se para estar atento à transmissão do mundo interno daquele que fala, captando assim o valor essencial de sua mensagem. A situação torna-se primordial no que condiz ao psicólogo. É deveras importante realizar um exercício constante de escuta, pois, sem ele, o estabelecimento do contato interpessoal torna-se impossível. O cliente certamente não se sentirá à vontade para trabalhar seus conteúdos, muito menos encontrará espaço propício para o surgimento da awareness¹. Parafraseando o brilhante Rubem Alves: “existem muitos cursos de oratória, mas nunca alguém se preocupou em criar um curso de escutatória”. Está disposto a ser pioneiro nessa arte? “Sintaxe” à vontade!
1. Segundo Yontef (1998), awareness é definida como “uma forma de experienciar. É o processo de estar em contato vigilante com o evento de maior importância no campo indivíduo/ambiente, com total suporte sensório-motor, emocional, cognitivo e energético.
* Diogo Luiz Santana Galline é psicólogo e ex-aluno do Cesumar.
Para saber mais:
ALVES, R. O amor que acende a lua. Campinas: Papirus, 2010.
BUBER, M. Eu eTu. Tradução. e introdução de Newton Aquiles von Zuben. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2001.
JACOB, L. Diálogo na teoria e na prática da Gestalt. The Gestalt journal. Vol XII, N )1: 1979.
HYNER, R. De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. 2. ed. São Paulo: Summus, 1995.
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