Vinícius Romagnolli R. Gomes*
Carlos Pertuis |
O mito se faz presente na sociedade humana desde a mais remota
antiguidade. Nas sociedades antigas pode-se perceber a presença da mitologia na
organização cultural, na vida individual e na coletiva, tanto nos costumes como
na religião. O mais antigo épico mitológico preservado é a Epopéia de Gilgamésh
(aproximadamente 2.750 a .C),
a qual trata da história do rei Gilgamesh, da antiga cidade de Uruk. O mito
narra as peripécias de Gilgamesh (constituído de dois terços divinos e um terço
humano) e de seu companheiro Einkidu, que veio dos céus num cometa. Ambos
desafiam a poderosa deusa Ishtar, e Einkidu é morto. Gilgamesh busca a
imortalidade e tenta descer ao mundo dos mortos para resgatar a alma de
Einkidu. O mito de Gilgamesh elabora assim as questões religiosas da morte, da
imortalidade e da finitude do ser humano.
Como podemos ver, o mito está associado ao misterioso e ao que não
pode ser expresso pelo discurso lógico da consciência (mundo do logos), assim sendo o mito seria uma
roupagem com a qual o homem se veste para entrar no mundo exterior. No entanto,
Jean-Pierre Vernant considera que o pensamento racional é inseparável do
pensamento mitológico, pois no tempo histórico, a gênese do pensamento racional
ocidental se dá a partir do pensamento mitológico. Carl G. Jung (1875-1961)
segue essa linha ao postular a existência de dois tipos de pensamento; um,
consciente, linear e adaptativo, que serviria às funções do ego de adaptação à
realidade; e o outro, denominado pensamento circular, mitológico e que ocorreria
ao sonhar e fantasiar.
"Mandala" Abelardo |
Para Jung a psique consciente é regida pelo pensamento dirigido ou
adaptativo, linear; enquanto a psique inconsciente é regida pelo pensamento
circular, onírico ou mitológico. Portanto, o ego tem o pensamento voltado para
a adaptação à realidade externa; sendo linear e funcionando pelo mecanismo de
associação de idéias racionais; o inconsciente, por sua vez, opera pelo
mecanismo associativo de imagens mitológicas. Vemos ainda, que o pensamento
simbólico, que é fundamental no processo analítico e essencial à individuação,
seria a junção das duas formas de pensamento apresentadas anteriormente. Ao
alcançar tal junção, o processo de individuação se processa com vigor, pois a
função simbólica do inconsciente se torna operante. Um exemplo disso são os
sonhos, nos quais em meio a diversos conteúdos que seriam resíduos do dia e
aparentes repetições do cotidiano, surgem novas imagens que modificam toda a
condução do processo, trazendo algo realmente novo. Essa junção das duas formas
de pensamento produz saídas para o impasse existencial. Resulta daí o fato de o
mito ser tão vital à existência humana. Há sempre uma mitopoese da psique (produção de mitos pela psique), sendo que os
mitos antigos são provenientes do mesmo “tecido” dos contos de fada, sonhos e
fantasias. Vemos assim a importância essencial desempenhada pela mitologia na
teoria junguiana; isso porque toda teoria psicológica é formulada a partir de
um alicerce psicopatológico.
"Mitos" Adelina |
A psicanálise de Freud teve a histeria como fundamento
psicopatológico, enquanto a psicologia analítica teve a esquizofrenia, cujo
conteúdo está profundamente imbricado nos mitos. Jung trabalhou com Eugen
Bleuler no Hospital Burgholzi e ao trabalhar com os delírios dos
esquizofrênicos descobre mitologemas, ou seja, núcleos de mitos que apontam
para uma origem comum e coletiva dos conteúdos delirantes. Tais mitologemas
proporcionaram a Jung a percepção do inconsciente coletivo, além disso,
fornecer-lhe-ão uma perspectiva simbólica na compreensão dos delírios. A partir
dessa perspectiva, o delírio passa a será visto como algo provido de sentido,
contrariando a psiquiatria clássica.
Para Jung, todo delírio teria um núcleo compreensível, desde que
se parta de um pressuposto simbólico. Além disso, Jung formulou o conceito de compensação, segundo o qual o delírio
operaria compensando a atitude da consciência. Tal conceito rege a relação
entre os dinamismos conscientes e inconscientes, operando como se fosse
mediante uma homeostase psíquica. Essa compensação homeostática é
característica geral da função
transcendente do si-mesmo,
postulada por Jung. O si-mesmo é
encarregado de tal função, buscando produzir uma terceira via simbólica a
partir da tensão de opostos irreconciliáveis, assim sendo, a função
mitopoiética da psique é a função
transcendente, pois opera por símbolos. Quando a tensão dos opostos é quase
insustentável, o delírio vem apresentar conteúdos de tonalidade impessoal
pertencentes ao inconsciente coletivo. Essa é a natureza dos mitologemas.
* Vinícius Romagnolli R. Gomes é psicólogo (CRP 08/16521) e
historiador.
Para saber
mais:
BOECHAT, Walter. A Mitopoese da
psique: mito e individuação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
CAMPBELL, Joseph. Mito e
Transformação. São Paulo: Ágora, 2008.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São
Paulo: Perspectiva, 2007.