"O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam"

Guimarães Rosa

16 de out. de 2011

SOBRE A DESCONFIANÇA


Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes*
O psicólogo (em especial o psicanalista) é por excelência um sujeito desconfiado, isso por que o método da psicanálise é buscar um sentido que vai além do que é dito, visto e perceptível, buscando um sentido para além do sintoma, um significado para um significante; buscando lutar contra um esquecimento. A psicanálise é uma ferramenta legítima para ajudar a compreender o passado. Nesse sentido, vemos que não só o psicanalista, mas também o historiador é uma espécie de “psicólogo amador”, na medida em que argumenta e faz uma reflexão em lugar de atribuir causa e motivos de forma negligente. Tal posição é defendida por Peter Gay (1989) em sua obra “Freud para historiadores”, na qual defende a tese de que a Psicanálise pode ser aplicada a todos os ramos da pesquisa histórica sem substituir outras abordagens interpretativas.
A “desconfiança” tão necessária ao psicanalista e ao historiador parece uma característica cada vez mais presente na sociedade atual, na qual somos impelidos, cada vez mais cedo e com mais intensidade, a entrar em uma competitividade visando obter o sucesso num mundo cuja lógica do consumo parece ter atravessado o inconsciente, sendo a mercadoria o grande organizador dos laços sociais; logo, o que vemos são pessoas céticas, que dificilmente acreditam que algo ou alguém possa ser genuinamente bom ou bem intencionado. Daí decorre a dificuldade na construção de laços afetivos, tendo em vista que a base de um relacionamento deve-se pautar (ou supostamente deveria) na confiança. Mas as perguntas que ficam são: como confiar em alguém em um mundo que nos faz ver o outro como um concorrente? Estaríamos vivendo o paradoxo de uma “sociedade da solidão”?
Considero, assim como muitos autores, que a cultura se reflete nos processos se subjetivação (fato que demonstra ainda mais a importância da articulação História/Psicanálise). Assim sendo, temos hoje uma “cultura do narcisismo, marcada pela descrença generalizada nos valores tradicionais, e por uma intensa busca do prazer pessoal e do individualismo em detrimento dos ideais coletivos. Esses valores individualistas e competitivos desencadearam uma “crise do sujeito”, a qual se configura como uma crise de ordem simbólica e que corresponde à pulverização das referências que sustentavam a transmissão da lei (ou crise da função paterna), transformando o homem contemporâneo em um “homem sem gravidade”, cujas referências tradicionais (Deus, pátria, família, trabalho e pai) deram lugar a outra referencias optativas para uso privado do freguês.
Há atualmente um apagamento da “dívida simbólica” que leva o sujeito a se ver como totalmente independente dos pais e dos grupos sociais aos quais pertence. E qual a relação desse contexto com a questão da desconfiança?
Ao concebermos a vida como um empreendimento e não mais como uma jornada de riscos, que inclui altos e baixos, acertos e erros; passamos a buscar resultados garantidos (desde os primeiros anos de vida) que possam contribuir para nossa inserção na voraz competição do mercado de trabalho. Assim, o que se vê são pessoas cada vez mais esvaziadas de imaginação, vida interior e capacidade criativa, sendo que os valores estão cada vez mais atravessados pela linguagem da eficiência comercial. Diante disso, somos sujeitos a cada vez mais desconfiar das pessoas e das coisas em um mundo que privilegia o logos e não o mythos, em uma sociedade “desencantada” e dita esclarecida, que se julga livre da influência mítica.
A desconfiança no sentido de buscar algo além do manifesto, inerente à atividade do psicanalista e do historiador, é diferente do medo estéril e do ceticismo que se fazem cada vez mais presentes na atualidade. É algo que nos impulsiona na busca para uma compreensão mais fiel da realidade externa, a qual está intrinsecamente ligada à nossa realidade interna; assim sendo, desconfie das dicotomizações e dualidades, pois não há bem sem mal, logos sem mythos, consciência sem o inconsciente, bem como não há História sem Psicologia.

*Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes é psicólogo e historiador.

Para saber mais:
GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
KEHL, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002

6 de out. de 2011

VIDA A DOIS: POSSIBILIDADES E DESTINOS


Karla Mariana Fernandes Guimarães*
Olá! Proponho aqui uma reflexão sobre os relacionamentos amorosos. Partirei do pressuposto de que todas as pessoas, inclusive as solitárias, são seres que estão constantemente à procura de convivência. Nós, estudiosos de psicanálise, entendemos que nossas vivências mais primitivas, em especial com as pessoas que nos cuidaram, formam o protótipo para todas as vivências posteriores que viermos a ter.
Aceitando a idéia de que o ser humano percebe o mundo através de “lentes” inconscientes, pode-se pensar que um encontro amoroso é um encontro inconsciente de duas personalidades que procuram uma na outra aspectos que não foram desenvolvidos em si, e vêem a possibilidade de satisfação das demandas emocionais. Como se fosse um ímã para as identificações entre ambos.
Além das identificações, outro mecanismo que entra em cena nesse período é a projeção. O casal projeta um no outro todos os desejos e demandas afetivas, e projeta também o senso crítico, ficando à mercê da paixão aflorada. Neste estado de paixão o casal é capaz de passar dias trancado num quarto vivendo apenas de amor, ou de um chocolatinho e água de vez em quando. Tudo o mais fica num plano secundário. Esse processo é necessário para que aconteçam as uniões amorosas. De que outro modo você se relacionaria com uma pessoa que escuta músicas que você detesta, ou tem hábitos que você julgaria abomináveis se fossem praticados por qualquer outra pessoa do mundo?
Conforme o tempo passa a paixão ameniza, a realidade externa volta a surtir efeito e os pombinhos têm a possibilidade de enxergar um ao outro de maneira mais sensata e isso cria algumas possibilidades: O casal pode separar-se nesse instante. O que quer dizer que as identificações não foram sustentadas. Ótimo, se não deu certo, melhor é acabar logo. Pode acontecer também de o casal, mesmo depois de readquirir o senso crítico, continuar admirando um ao outro e ficar junto, ocorrendo a possibilidade de uma união sólida e saudável. Melhor ainda!
O pré-requisito para uma união sólida e saudável é o estabelecimento de um vínculo afetivo, que compreende a união de aspectos subjetivos entre o casal e modificações subjetivas em ambos durante o relacionamento. Para que esse vínculo se estabeleça cada um do par precisa abrir mão da identidade prévia, dos sentidos pessoais, aceitar as identificações provindas do outro e as identificações criadas pelo próprio vínculo entre eles. Nesse momento é natural surgir um colapso identificatório, que implica no questionamento de certezas, convicções, sonhos e planos prévios de cada um. Por exemplo: o sonho de uma moça em ter vários filhos se chocando com os objetivos de um rapaz que sonha trabalhar e viajar muito antes de ter filhos, isso se os tiver...
Inegavelmente, é comum acontecer de o casal manter-se unido e demasiadamente envolvido em seus conteúdos inconscientes, de modo a estabelecer um conluio inconsciente em que cada um fica responsável por suprir as demandas do outro. Esses não conseguem criar um vínculo afetivo, comungam apenas de um contato.
Quando um do par se cansa de servir de apoio emocional ao outro ou o outro percebe que não está tendo as demandas satisfeitas, iniciam os conflitos. As brigas acontecem e em casais mais doentios, até agressões físicas. Contudo, a separação não acontece. O casal parece viver em sintonia com as lamúrias e ameaças. Um não consegue viver sem o outro mesmo que seja “aos trancos e barrancos”. Se por qualquer motivo, um do par cresce emocionalmente, amadurece, impunham-se duas saídas para eles: ou o outro utiliza seus recursos internos para amadurecer também, ou a separação acontece.
Quando a saída escolhida por este tipo de casais for a separação, ela pode ser considerada um mecanismo utilizado para não ficarem fundidos um com o outro. Claro que é uma defesa fóbica diante da sensação de sufocamento, porém, extremamente saudável. A separação pode ser um convite à realização de luto e reflexão – estados de mente necessários para que cada um possa elaborar coisas mal resolvidas interna e externamente – poder tornar-se disponível a novas projeções e identificações mais saudáveis e estar aberto realmente ao estabelecimento de vínculos afetivos.

* Karla Mariana Fernandes Guimarães é psicóloga (CRP 08/15469)