"O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam"

Guimarães Rosa

29 de mai. de 2011

O MÉTODO INDICIÁRIO DE FREUD A SHERLOCK HOLMES

Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes*

Carlo Ginzburg, historiador italiano, busca em sua obra “Mitos, emblemas, sinais” (1989) demonstrar como emergiu por volta do final do século XIX o modelo epistemológico ou o paradigma indiciário. Para chegar a tal objetivo, o autor correlaciona história da arte, psicanálise, investigação, semiótica, focando seu estudo principalmente em três figuras: o crítico de arte Giovanni Morelli, o fundador da psicanálise Sigmund Freud e o personagem de Arthur Conan Doyle: Sherlock Holmes. A partir desses nomes Ginzburg constrói o paradigma de um “saber indiciário”, um método de conhecimento baseado na observação do pormenor revelador e que traz à luz detalhes negligenciados, revelando perspectivas surpreendentes.
Ginzburg cita Morelli e seu método para identificar falsificações; baseando-se não nas características mais vistosas e, portanto mais facilmente imitáveis, mas sim nos pormenores mais negligenciáveis e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia. Tal método, porém, foi julgado mecânico e positivista e caiu em descrédito. O autor nos leva a perceber a aproximação do “método indiciário” de Morelli ao método que era atribuído a Sherlock Holmes pelo seu criador, Arthur Conan Doyle, ou seja, uma relação entre o conhecedor de arte e o detetive que desvenda um crime baseando-se em indícios imperceptíveis para a maioria das pessoas.
A correlação feita entre Morelli e a psicologia moderna, mais especificadamente com Freud, (para o qual há uma primazia do inconsciente sobre o consciente no que diz respeito ao nosso caráter). O autor fala sobre o ensaio de Freud “O Moisés de Michelangelo” (1914), no qual o pai da psicanálise cita Morelli e ressalta a importância dos detalhes secundários e das particularidades insignificantes. O próprio Freud fala da aproximação entre o método de Morelli e à técnica da psicanálise médica, sendo que esta também faz sua investigação em coisas concretas e ocultas, através de elementos pouco notados ou despercebidos por nossa observação.
A leitura dos ensaios de Morelli representou para Freud, a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores; a partir dessa visão, os pormenores considerados sem importância anteriormente passavam a fornecer a chave para se chegar aos produtos mais elevados do espírito humano.
Vemos assim, delinear-se uma analogia entre os métodos de Morelli, Sherlock Holmes e Freud. Nos três casos, há pistas que permitem captar uma realidade mais profunda; mais precisamente signos pictóricos (no caso de Morelli), indícios (para Holmes) e sintomas (para Freud). Essa tripla analogia tem fundamento e ligação pela semiótica ou semiologia médica, ou seja, a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais e por vezes irrelevantes aos olhos do leigo.

*Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes é psicólogo ex-aluno do Cesumar e historiador ex-aluno da UEM.

Para saber mais:
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

22 de mai. de 2011

A INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA

 Diogo Assunção Valim*
Minha intenção ao escrever este artigo é de promover uma breve reflexão a respeito da técnica primordial da psicanálise: a interpretação. Assim como promover um terreno fértil para que novos psicólogos que tenham optado pela psicanálise possam encontrar aqui um pequeno apoio a sua iniciação da prática clínica. Tendo em vista que este jornal foca a psicologia como um todo, pretendo elaborar este artigo de uma forma que possa ser inteligível também para os profissionais e estudantes que fizeram a opção por outra linha de abordagem ou ainda não tiveram contato com a psicanálise. Para que isso seja possível teremos que resgatar alguns conceitos básicos da psicanálise antes de avançar para as contribuições dos autores contemporâneos.
Antes de entrarmos no assunto interpretação, devemos nos perguntar: porque o psicólogo tem que interpretar o que o paciente diz? Não seria o paciente capaz de dizer o que ocorre consigo?
Para responder esta pergunta teremos que recorrer uma das primeiras descobertas de Freud: o inconsciente. Caso o leitor já tenha passado pela situação de esquecer um nome ou palavra, algo familiar o qual se tem a certeza de se saber, mas simplesmente não conseguir trazer a consciência, então já experimentou o poder do inconsciente. Uma parte de nossa mente impossível de ser penetrada pela nossa própria vontade, onde mantemos as mais primordiais experiências vividas. A fim de poupar a consciência do sofrimento, também utilizamos o inconsciente para livrar-nos de lembranças dolorosas e indesejadas.
O problema de utilizarmos o inconsciente como cofre de experiências e idéias as quais desejamos esquecer é que este cofre não pode prendê-las por completo. Tudo o que é reprimido sem o devido tratamento, exige ser lembrado. A situação se intensifica quando isto que foi reprimido volta a consciência em forma de sintoma ou de atuações. É o caso de pessoas que sentem dores em determinadas partes do corpo e sempre que procuram o médico não encontram doença alguma. Como um exemplo de atuação podemos citar pessoas que constantemente lançam-se em relações amorosas desastrosas.
Sendo a natureza do problema inconsciente, o paciente não pode por si só ter acesso as lembranças ou idéias que o libertariam de seu sintoma ou atuações repetitivas. 
Para Freud o objetivo da terapêutica psicanalítica residiria:
“[...] na possibilidade de livrar-se desta repressão, de modo a permitir que parte do material psíquico inconsciente se torne consciente e privá-la assim de seu poder patogênico.” (FREUD, 1913, pág. 188)
E para que seja alcançado tal objetivo a ferramenta a ser utilizada é a interpretação psicanalítica. A primeira menção de Freud sobre a interpretação foi em 1900 na “Interpretação dos Sonhos”:    
“[...] “interpretar” um sonho implica em atribuir a ele um “sentido” – isto é, substituí-lo por algo que se ajuste a cadeia de nossos atos mentais como um elo dotado de validade e importância iguais ao restante“ (FREUD, 1900, pág. 131)
Com o desenvolvimento da técnica Freud estendeu esta prática para a fala e o comportamento do paciente. Assim como nos sonhos, quando o paciente utiliza a fala para expressar suas idéias e pensamentos o inconsciente age de forma a delatar a verdadeira intenção por trás das simples palavras concretas. São muitas as formas como isso ocorre, vão desde comportamentos a falas ou gestos, mas podemos citar como exemplo os famosos “atos falhos”, quando o paciente é traído pelas próprias palavras. A função da interpretação é justamente dar sentido a estes fragmentos liberados pelo inconsciente. Sendo assim, o principal atributo e também o mais conhecido é o de “traduzir” a fala do paciente, ligando idéia e afeto.
Mas qualquer leitor a esta altura poderia se perguntar: “mas traduzir baseado em que? Teria o psicanalista algum manual? Ou teria ele um poder sobre-humano de conhecer a verdade que o paciente não vê? Para isto a psicanálise não se utiliza somente da teoria, mas também de uma propriedade simples e inerente a todo ser humano: a lógica. Vamos colocar em um exemplo hipotético: temos uma paciente que constantemente vem a sessão e gasta todo o tempo desta queixando-se e insultando sua mãe, segundo ela sua progenitora seria a causa de todos seus problemas.
Agora vamos colocar as lentes da lógica e pensar sobre isso: porque será que esta paciente procurou um psicólogo em primeiro lugar? Se ela própria acreditasse que seu problema estava na figura da mãe não pagaria um psicólogo sabendo que este não ira interferir no problema diretamente, mas agiria diretamente sobre o que a incomoda. Espero que o leitor esteja seguindo meu raciocínio: temos aqui uma mulher que diz ser sua mãe a problemática, mas é ela própria quem procura tratamento. Com isto em mente, temos que repensar o que a fala desta paciente esta escondendo e interpretar isto a fim de que ela liberte-se de seu discurso superficial.
Outras premissas que todo psicanalista se baseia para elaborar suas interpretações é o fato de que quando um paciente fala, sempre fala de si. Mesmo quando relata fatos que ocorreram em sua vida, ele as relata como as percebeu e o que pode retirar de cada fato, desta forma, na clínica nunca lidamos com a realidade propriamente dita, interagimos antes, com a realidade do paciente.
Segundo Otto Fenichel (2005) a interpretação age como modo a ajudar o paciente a eliminar suas resistências tanto quanto possível, chamando a atenção do paciente para os efeitos de sua própria resistência. O principal motivo pelo qual o paciente não pode livrar-se de seus sintomas é, alem da ambigüidade de sentimentos envolvendo o autoconhecimento, que sua atenção está dispersa e desfocada de si próprio ou das questões chaves do conflito. Desta forma, a interpretação também serve como um “holofote” que foca a atenção do paciente onde ela é mais proveitosa.
Vamos recorrer ao exemplo já dado. A interpretação do psicólogo na ocasião em questão retiraria a atenção da paciente sobre sua mãe para focar nela própria, desta forma ela pode perceber-se na relação com sua mãe e descobrir suas vontades inconscientes que a levaram a procurar um atendimento psicológico.
Como a verdadeira motivação do paciente é inconsciente, logicamente sua consciência será repleta de “lacunas” e para cobrir estes furos ele utiliza-se da fantasia. Como bem coloca Aulagnier (1995), outro papel importante da interpretação é iluminar estes furos e mostrar a incoerência das fantasias criadas para tapá-lo, através da atenção do paciente focada sobre este ponto e somado ao papel de “tradutor” assumido pelo terapeuta, é possível reaver o que fora subtraído pelo inconsciente. A mesma autora ressalta um efeito importante da interpretação na mente do paciente: a mudança econômica. Em termos simples, o paciente muda sua economia de energia ao desprender-se de fantasias, atuações e ideações patológicas, desta forma esta energia fica livre para ser investida em outros campos da vida do paciente.
Zimerman (2004) destaca que no termo interpretação deve se levar em conta o prefixo inter pois designa uma relação de vincularidade entre o analisando e o analista, neste espaço vincular se daria a interpretação, como uma construção da dupla e não apenas uma atividade do analista. Pensando nisto, vamos mudar o lado da moeda agora e entender a interpretação do ponto de vista do psicólogo. Segundo Zimerman, a interpretação teria 3 fases na mente do analista: acolhimento dos conteúdos do paciente, quando o psicólogo escuta o paciente nas amplas formas de comunicação. Em seguida a transformação, tendo os conteúdos do paciente em sua mente o psicólogo os transforma em algo que possa ser compreendido pelo paciente. E o ultimo passo é a devolução em forma verbal.
Certamente este é um assunto muito mais amplo e profundo e aqui temos a possibilidade apenas e arranhar a ponta do iceberg, mas se este artigo foi capaz de instigar a mente do leitor e promover um interesse maior por esta fascinante técnica então considero sua missão cumprida.

*Diogo Assunção Valim é psicologo e ex-aluno do Cesumar.

Para saber mais:
AULAGNIER, Piera. O trabalho da Interpretação in Como a Interpretação vem ao Psicanalista – São Paulo: Editora Escuta, 1995.
FREUD, Sigmund. Técnica da psicanálise in: Obras completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira (volume XXIII) – Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. O Método de interpretação dos Sonhos; análise de um sonho modelo in: Obras completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira (volume IV) – Rio de Janeiro: Imago, 1996.

14 de mai. de 2011

A PERSONALIDADE FÁLICA EM MULHERES: REFLEXÕES SOBRE A VISÃO DE MELANIE KLEIN


Maria Carolina Bittencourt Socreppa*
Rute Grossi Milani**
Rosana Ravelli Parré***
Algumas características masculinas podem ser marcantes na personalidade da mulher, como o autoritarismo e o desempenho profissional no mínimo equivalente a média dos homens, observadas em mulheres que ocupam cargos de destaque em empresas e na política. Tais características podem configurar uma estrutura de personalidade fálica. O presente estudo teve como objetivo verificar de que forma o desenvolvimento primitivo da personalidade influencia na formação de uma estrutura de personalidade fálica na mulher, para isso procedeu-se ao estudo dos textos de Melanie Klein e Hannah Simon.
As idéias da inglesa Melanie Klein, discípula de Freud, apontam que a menina em seu desenvolvimento sexual, obtém parcialmente através da amamentação da figura materna, conteúdos bons e maus. No entanto, tais conteúdos podem provocar excessivas frustrações na criança, o que faz a mesma se voltar parcialmente para o corpo de sua mãe, isto é, a criança desloca-se do seio para o corpo, onde fantasia que existem diversos pênis do pai e os bebês que essa mãe pode gerar desse genitor.
Refletindo sobre a psicodinâmica da mulher fálica, entende-se que a menina ao se deparar com a fantasia de que a mãe possui em seu interior conteúdos ricos, como o pênis paterno, isso lhe desperta intensos sentimentos de raiva e inveja, o que lhe provoca culpa por estar destruindo o rico interior materno. E, como forma de diminuir essa angústia de destruição da mãe, a menina projeta na mesma esses sentimentos, passando a ser o alvo dos ataques maternos.
Diante disso, as tendências fálicas surgem na menina devido à intensa inveja despertada na relação materna, o que a leva à fantasia inconsciente de que seu interior ficou vazio e estragado, assim como sua feminilidade, com isto procura uma maneira de se livrar dessa angústia, através da fantasia onipotente de ser possuidora do pênis. Esta fantasia faz com que desista de se identificar com a mãe para ter o pai como padrão de identidade, e tomar para si os seus atributos masculinos.
Na puberdade, a menina deixa de se identificar com esse pai possuidor de um pênis, para voltar sua atenção às questões biológicas do seu corpo, que despertam a sua sexualidade, logo, se identifica com a figura feminina e acaba por nutrir a sua feminilidade. Entretanto, quando a menina com tendências fálicas não tolera as mudanças da sua puberdade e não possui uma figura feminina que lhe possibilite a identificação, a mesma pode reativar o vazio experimentado anteriormente, levando-a a procurar no pênis formas que lhe proporcionem esse falo poderoso, como na profissão e nos tipos de relações e atitudes estabelecidas em sua vida.
Por fim, vemos com base nas idéias de Melanie Klein, que as mulheres possuidoras de traços de personalidade fálica procuram maneiras de preencher o vazio de sua feminilidade, através de trabalhos e atitudes predominantemente masculinas.

*Maria Carolina Bittencourt Socreppa psicológa e ex-aluna do Cesumar
**Rute Grossi Milani é professora do curso de Psicologia do Cesumar
***Rosana Ravelli Parré é professora do curso de Psicologia do Cesumar.

Para saber mais:
KLEIN, Melanie; HEIMANN, Paula. ISAACS, Susan; RIVIERE, Joan. Os processos da psicanálise. Rio de Janeiro: Ed Zahar, 1952.
MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio. São Paulo: Rosa dos tempos, 2000.
SEGAL, Hanna. Introdução à obra de Melanie Klein. São Paulo: Imago, 1975.