Fúlvio César Casemiro*
Geisi Mara Rodrigues**
Não é fácil escrever sobre o narcisismo, em tão poucas linhas, diante da complexidade e importância deste conceito na Psicanálise. No entanto, arriscamo-nos a fazê-lo devido ao fato de que muito se tem falado em narcisismo na sociedade atual. O que se diz, de modo geral, é que temos nos tornado muito mais individualistas, competitivos, consumistas, vaidosos, vazios, etc. Não dá para negar as mudanças na subjetividade humana na contemporaneidade, mas é necessário buscar as raízes do conceito, e, para tanto, é claro que recorremos a Freud.
Em Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914) – considerado o principal trabalho onde o tema é tratado – Freud utiliza, como fontes de observação do narcisismo, as parafrenias (esquizofrenia e paranóia), as neuroses de transferência e a vida amorosa dos humanos – sendo esse o aspecto que daremos maior ênfase neste momento.
Ao se pensar na vida amorosa, algumas perguntas vêm à mente: como desenvolvemos nossa capacidade de amar? Como reconhecemos que aquele que amamos é de nós diferente? Como toleramos a dependência e a iminência da possibilidade de perder? De qualquer modo, é importante pensar que essas são características necessárias para o vínculo de amor, e que faltam nos transtornos narcisistas.
A escolha amorosa feita na vida adulta depende das primeiras relações que temos ainda enquanto bebês. O que primeiro se consegue observar na criança é que ela escolhe seus objetos sexuais a partir de suas experiências de satisfação.
Para Freud, isso se evidencia na escolha dos primeiros objetos sexuais da criança, quais sejam aqueles que estão diretamente envolvidos com sua alimentação, isto é, sua mãe ou substituto. Essa forma de escolha de objeto é chamada de veiculação sustentada (anteriormente traduzida como anaclítica). Quando o desenvolvimento libidinal sofre perturbações, a escolha de seu futuro objeto de amor não se pautará na imagem da mãe, mas na sua própria pessoa, e isso ocorreria, por exemplo, nas perversões e no homossexualismo. E essa observação foi para Freud o que forneceu motivo mais forte para a hipótese do narcisismo.
Nesse mesmo artigo, Freud ressalta que, com tais idéias, não quer separar os seres humanos em duas categorias de acordo com sua forma de escolha de objeto. Para ele, esses dois caminhos estão abertos a todo ser humano e um ou outro caminho será privilegiado. O que ele quer realmente afirmar é que todo ser humano possui dois objetos primordiais, quais sejam, ele mesmo e quem dele primeiro cuida. Assim, em todos há um narcisismo primário, que casualmente pode manifestar-se de maneira predominante na escolha de objeto.
Em Totem e tabu (1912-1913), Freud descreve o narcisismo como uma fase do desenvolvimento libidinal intermediária entre o auto-erotismo e a escolha de objeto, na qual as pulsões sexuais que estavam isoladas no auto-erotismo são reunidas em um todo e encontram um objeto. Esse, por sua vez, não é externo ou estranho ao bebê, pois se trata de seu próprio eu, que Freud acredita ter se constituído nessa época.
Se o indivíduo fica fixado nesta fase, seu comportamento será de amor a si mesmo. Apesar de Freud dizer não saber com se dão os arranjos pulsionais acima citados, diz que a organização narcisista nunca é por nós totalmente abandonada, o “ser humano permanece narcisista, mesmo depois de ter encontrado objetos externos para sua libido” (p.99).
Em termos de psicopatologia, podemos falar em “transtornos narcisistas”, resultado de perturbações na passagem pela fase de desenvolvimento narcisista, na direção do estabelecimento de uma relação a três - Complexo de Édipo.
Zimermam (2004) nos lembra que características narcísicas estão presentes em todos os seres humanos de alguma forma e em algum momento, embora nos transtornos narcisistas exista o predomínio e intensidade de alguns fatores importantes: um estado de indiferenciação entre o eu e o não-eu o que contribui para a ilusão onipotente de que não depende de ninguém; um estado de ilusão em busca de uma completude; uma negação das diferenças; a presença da parte psicótica da personalidade; presença de núcleos de simbiose e ambiguidade; uma lógica do tipo binário (tudo ou nada); uma escala de valores centrada no ego ideal e no ideal de ego, entre outras.
Outro aspecto importante a se considerar neste tema em discussão é a vulgarização do conceito de narcisismo, o que fez com que se passasse a enxergar as pessoas com um transtorno narcisista ou com fortes características desse, apenas como egoístas, vaidosos, “exibicionistas”. Como psicólogos que desejamos trabalhar com a clínica de orientação analítica, necessitamos, porém, entender que esta é uma pessoa que sofre.
Os versos de Vinícius de Morais, na obra “A Solidão” nos auxiliam a compreender essa dimensão de sofrimento.
“A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.
A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.
O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre".
Ao não amar, não perde, mas também não ganha ou experimenta a verdadeira experiência de amar e ser amado. O narcisismo original da criança, segundo Freud (1914), está exposto a perturbações e a reações de defesa a tais perturbações, mas para Freud, o trecho mais importante de todo esse processo é o complexo de castração. É por meio da castração que a criança pode melhor vivenciar a situação edípica, ter um funcionamento mais autônomo e vivenciar o desejo sexual genital. Ao não ter tudo, a criança pode vivenciar o amor e a felicidade. Se isso não ocorre, o sujeito poderá vivenciar a tristeza do narcisismo que, mesmo aparentemente tendo tudo, se sente infeliz.
*Fúlvio César Casemiro (CRP 08/15146) é psicólogo e ex-aluno do Cesumar.
**Geisi Mara Rodrigues (CRP 08/15152) é psicóloga e ex-aluna do Cesumar.
Para saber mais:
BENHAÏN, M. Amor e ódio: a ambivalência da mãe. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2007.
FREUD, S. (1914). Sobre o Narcisismo: uma introdução. In: Freud, S. (1914). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.XIV. Edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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