"O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam"

Guimarães Rosa

8 de ago. de 2011

A INTERFACE PSICANÁLISE/HISTÓRIA NA COMPREENSÃO DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO


Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes*
O psicólogo (em especial o psicanalista) é por excelência um sujeito desconfiado, isso por que o método da psicanálise é buscar um sentido que vai além do que é dito, visto e perceptível, buscando um sentido para além do sintoma, um significado para um significante; buscando lutar contra um esquecimento. A psicanálise é uma ferramenta legítima para ajudar a compreender o passado. Nesse sentido, vemos que não só o psicanalista, mas também o historiador é uma espécie de psicólogo amador, na medida em que argumenta e faz uma reflexão em lugar de atribuir causa e motivos de forma negligente. Tal posição é defendida por Peter Gay (1989) em sua obra “Freud para historiadores”, na qual defende a tese de que a Psicanálise pode ser aplicada a todos os ramos da pesquisa histórica sem substituir outras abordagens interpretativas.
A “desconfiança” tão necessária ao psicanalista e ao historiador parece uma característica cada vez mais presente na sociedade atual, na qual somos impelidos, cada vez mais cedo e com mais intensidade, a entrar em uma competitividade visando obter o sucesso num mundo cuja lógica do consumo parece ter atravessado o inconsciente, sendo a mercadoria o grande organizador dos laços sociais; logo, o que vemos são pessoas céticas, que dificilmente acreditam que algo ou alguém possa ser genuinamente bom ou bem intencionado. Daí decorre a dificuldade na construção de laços afetivos, tendo em vista que a base de um relacionamento deve-se pautar (ou supostamente deveria) na confiança. Mas as perguntas que ficam são: como confiar em alguém em um mundo que nos faz ver o outro como um concorrente? Estaríamos vivendo o paradoxo de uma “sociedade da solidão”?
Considero, assim como muitos autores, que a cultura se reflete nos processos se subjetivação (fato que demonstra ainda mais a importância da articulação História/Psicanálise). Assim sendo, temos hoje uma “cultura do narcisismo, marcada pela descrença generalizada nos valores tradicionais, e por uma intensa busca do prazer pessoal e do individualismo em detrimento dos ideais coletivos. Esses valores individualistas e competitivos desencadearam uma “crise do sujeito”, a qual se configura como uma crise de ordem simbólica e que corresponde à pulverização das referências que sustentavam a transmissão da lei (ou crise da função paterna), transformando o homem contemporâneo em um “homem sem gravidade”, cujas referências tradicionais (Deus, pátria, família, trabalho e pai) deram lugar a outra referencias optativas para uso privado do freguês. Há atualmente um apagamento da “dívida simbólica” que leva o sujeito a se ver como totalmente independente dos pais e dos grupos sociais aos quais pertence. E qual a relação desse contexto com a questão da desconfiança?
Ao concebermos a vida como um empreendimento e não mais como uma jornada de riscos, que inclui altos e baixos, acertos e erros; passamos a buscar resultados garantidos (desde os primeiros anos de vida) que possam contribuir para nossa inserção na voraz competição do mercado de trabalho. Assim, o que se vê são pessoas cada vez mais esvaziadas de imaginação, vida interior e capacidade criativa, sendo que os valores estão cada vez mais atravessados pela linguagem da eficiência comercial. Diante disso, somos sujeitos a cada vez mais desconfiar das pessoas e das coisas em um mundo que privilegia o logos e não o mythos, em uma sociedade “desencantada” e dita esclarecida, que se julga livre da influência mítica.
A desconfiança no sentido de buscar algo além do manifesto, inerente à atividade do psicanalista e do historiador, é diferente do medo estéril e do ceticismo que se fazem cada vez mais presentes na atualidade. É algo que nos impulsiona na busca para uma compreensão mais fiel da realidade externa, a qual está intrinsecamente ligada à nossa realidade interna; assim sendo, desconfie das dicotomizações e dualidades, pois não há bem sem mal, logos sem mythos, consciência sem o inconsciente, bem como não há História sem Psicologia.

*Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes é psicólogo, ex-aluno no Cesumar e historiador, ex-aluno na UEM.
Para saber mais:
GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
KEHL, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Nenhum comentário:

Postar um comentário