*Marco Correa Leite
Quando o Supérfluo se tornou o necessário, podemos dizer que enfim,
entramos verdadeiramente em uma sociedade diferente da modernidade. Chamam este
tempo de contemporaneidade, ou ainda, a sociedade líquida, sem vínculos, onde
acima de tudo o que prevalece é o efêmero.
Mas afinal de contas, o que é que aconteceu que as pessoas deixaram de
importar-se com o amanhã?
Cavernas de Mármore do Lago Carrera - Chile |
Será que o consumismo conseguiu deixar uma marca indelével tão arraigada
em nossa psique que acabamos de fato entrando na onda, de uma vez por todas, de
que tudo que eu quero eu posso conseguir. Seja através da compra, do roubo, ou
da troca, é possível satisfazer meus desejos, e ainda por cima, existirá sempre
algo que o satisfará.
Isso é que imaginamos quando damos uma olhada na sociedade um pouco que
superficialmente. Claro que reconheço os vínculos cada vez mais instáveis.
Claro que percebo que o fútil e o efêmero, ou seja, a aparência hoje em dia se
sobressai à essência, se sobressai àquilo que está arraigado em nós. Consigo
enxergar sem muito sacrifício relações humanas cada vez mais pragmáticas na
medida em que conquisto o outro até que eu usurpe dele todo seu valor, sua
vida, seu ânimo, até que ele não me sirva mais, como se eu fosse seu centro,
seu rei, seu deus, e ele, um mero súdito que está ali na posição de objeto para
me servir.
Reconheço que as pessoas cada vez se utilizam de uma máscara perversa,
na qual utilizam do outro como um objeto, até que o outro torne-se dejeto. A
partir daí, cada um para seu canto.
Onde está o amor no qual aprendemos a sermos felizes com a alegria
estampada no sorriso do outro. Onde estará o ser feliz com o outro, ao invés de
puro sacrifício de uma das partes? Onde estará a virtude de ser, de existir
para além das máscaras que encobrem os sujeitos na contemporaneidade.
Pergunto-me por fim, onde estará os sujeitos, os indivíduos, os humanos?
Na clínica, timidamente eles acabam aparecendo.
Homens que buscam desesperadamente alguém pra conversar e pagam um preço
altíssimo por isso. Mulheres que encontram-se com homens diferentes todas as
noites, mas que ainda esperam em seu íntimo, pelo seu príncipe encantado.
Pessoas que buscam encontrar outras pessoas na vida, e o que acabam encontrando
de melhor é a figura do analista treinado para isso.
Liz McKay |
Não é de hoje que se conhecem relatos de casos de homens que buscam
prostitutas para conversar. Pode ser na obra "O doce veneno do
escorpião" ou na vida real. Pessoas pagam para poderem ser ouvidas, pagam
para encontrar-se alguém.
Na análise, embora seja uma experiência paga, e acima de tudo
artificial, visto que é criada, a pessoa encontra-se consigo mesma. Percebe-se
pessoa, descobre-se alguém, e a partir daí, posso até arriscar, surge um ser
humano.
Até então vivendo sem sentido algum, a experiência analítica promove uma
escuta de si mesmo, e aos poucos os sentidos vão sendo construídos e
reconstruídos. A vida começa a ser vista de forma diferente, na medida em que
cada um suporta. As relações começam a ter um gosto especial, podendo até
chegar ao limite de, quem sabe, o analisante encontrar um outro alguém fora do
consultório.
Os pais, irmãos, irmãs, familiares, deixam de ser apenas membros, e
tornam-se pessoas. Os amigos passam a ser importantes e insubstituíveis, não
que não possam ser trocados, ou perdidos, mas passam a ganhar o status de
únicos, cada um com suas características próprias.
A maioria das pessoas que entram em análise acabam percebendo que o
sonho que viviam, por melhor que seja era muito mais um pesadelo. Acordam
bruscamente com as marcas do tempo que passou sem saber direito o que ou quem
as deixou ali, mas passam, a partir daquele momento a colorir com as cores que
deseja e dar um sentido próprio e querido para cada marca, para cada cicatriz.
Psicanálise em nosso tempo corrido, do efêmero, do vulgar, dos padrões
despadronizados onde o que reina é a liquidez dos laços e das relações sociais
parece coisa de louco. E talvez até seja.
Posso assegurar no entanto que os normais muitas vezes invejam os
loucos. Basta recorrermos à alguns nomes como João Paulo II, Gandhi, Jesus
Cristo, Sidharta Gautama (o primeiro Buda), entre tantos outros que foram
considerados loucos.
Todos estes e muitos outros tem uma coisa em comum, eles tinham laços
profundos consigo mesmos, com os outros, e também buscavam a paz. Cada um de
sua forma encontrou na sua vida a paz que almejava. Mesmo que para todo o resto
do mundo aquilo fosse dor, sofrimento, angústia, loucura. Para eles, era
justamente o que buscavam.
A análise hoje permite este espaço, este tempo, em que as pessoas
dedicam a si mesmas para encontrarem-se no turbilhão tempestuoso que é a vida.
Mesmo que a tempestade muitas vezes continue, caba chegando um momento em que
ela deixa de ser tão assustadora.
Arrisco a dizer que a psicanálise nunca foi tão necessária quanto é hoje
em dia. Poder ter um momento para si mesmo, onde o outro ali na frente não
aponta ninguém além de você mesmo. Pode parecer coisa de louco, talvez até
seja, mas é o primeiro passo para um vínculo mais profundo consigo mesmo, e
depois com os outros.
Como as pessoas poderiam ter um vínculo profundo se não conhecem a quem
estão para vincular-se? Não se casa alguém, ou fica-se sócio com alguém que não
conhecemos. Assim somos todos nós. Estamos casados em um corpo com alguém
estranho a nós mesmos. Até peço desculpas pela franqueza, mas é impossível ter
paz com quem não se conhece, é impossível ter paz consigo mesmo se não nos
conhecermos ao menos um pouco, o nome disso é indiferença. A paz, é fruto do
conhecimento que tenho do outro, e a partir daí do respeito mútuo, entre eu e,
por que não, eu mesmo.
*Marco Correa Leite - Psicólogo Clínico e Mestrando em Psicologia pela
UEM CRP 08/17139