"O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam"

Guimarães Rosa

29 de jan. de 2013

A CLÍNICA DOS LIMITES


Rogério Thaddeu *
Janet Bongiovanni
A fragilidade das fronteiras que demarcam o psiquismo tem merecido a atenção de alguns psicanalistas nos últimos anos, sobretudo, diante dos desafios colocados à clínica na contemporaneidade, exigindo uma clínica que, no mínimo, repense os alcances e limites de sua prática. Conforme ressalta CHAGNON (2009) A noção de "estado-limite" ou, ainda, de caso-limite (tradução de transtorno borderline) revela, assim, inúmeras preocupações dos psicanalistas. Estes descobriram que pacientes considerados como neuróticos desenvolveram, no percurso da terapia psicanalítica, modos de funcionamento psicótico, regressivos e temporários ou mais duradouros. Partindo desta observação, surgiu a preocupação em resgatar esses pacientes e em encontrar recursos técnicos para tornar o trabalho psicanalítico possível. Houve o surgimento de uma eflorescência de trabalhos, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, tanto na Europa como na América do Norte, a tal ponto que podemos considerar hoje os estados-limite como um novo paradigma: eles são para a psicanálise atual aquilo que a histeria era outrora.
Este artigo visa apresentar a temática dos limites a partir de algumas literaturas francesas, com o objetivo de repensar a clínica psicanalítica na atualidade. Para tanto, nos apoiaremos no percurso desenvolvido tanto em nossa prática clínica como psicoterapeuta quanto no contexto da saúde mental pública, já há algum tempo, sobretudo, diante de pacientes que consideramos “graves”, que no nosso entender, não “respondem” à técnica psicanalítica convencional, exigindo um trabalho árduo e uma análise contínua sobre a transferência e contratransferência. Neste artigo, optamos pela terminologia “estados-limite”, que corresponde mais à perspectiva de André Green, um dos expoentes da psicanálise internacional, bem como, alguns autores brasileiros que se dedicam a esta temática, como Marta Rezende Cardoso e Luiz Cláudio Figueiredo. 
Nikos Gyftakis
De uma forma bastante geral, partindo de nossa experiência clínica, observamos o quanto alguns pacientes, que, encaminhados por psiquiatras ou que já passaram por hospitalizações manifestando uma angústia difusa e flutuante, traços de personalidade infantil, depressiva, masoquista ou narcísica, com tendências impulsivas que frequentemente levam à passagem ao ato, auto ou heteroagressões, condutas perversas e dificuldades consideráveis nas relações interpessoais, parecem transitar em diferentes momentos para uma determinada estrutura psíquica, não se fixando à nenhum “lugar”, ou seja, não se situam na neurose, na psicose e na perversão, embora possam manifestar um modo de funcionamento psíquico que se confunde com determinada estrutura.
Se fizermos uma analogia com os países ou estados de fronteira, é fácil perceber o quanto pode haver riscos, uma vez que na fronteira, os limites embora pareçam estar demarcados, a violência, os excessos parecem coexistir com maior visibilidade. Para aqueles que vivem na fronteira, há sempre o risco de se misturar com um estado ou outro, com um país ou outro, ofuscando assim, a própria identidade.  É curioso notar que os pacientes considerados mais graves, possuem “falhas” na capacidade para simbolizar, na capacidade para diferenciar o Eu do outro. À primeira vista, dependendo do percurso terapêutico ou de um momento particular de sua vida, o paciente “limítrofe”, pode se assemelhar muito à um psicótico ou à um perverso, mobilizando grandemente à contratransferência do analista ou do terapeuta. É importante ressaltar que a própria conceituação do que seja um paciente considerado “grave, difícil” encontra-se profundamente implicada na relação terapêutica, não ocorrendo unicamente nos pacientes “limítrofes.” 
O tema dos casos ou “estados-limite” tem ocupado um lugar de destaque nos debates na contemporaneidade, como ressalta Cardoso (2004), sobretudo no sentido de poder pensar o estatuto das “novas” psicopatologias, bem como, pensar a especificidade do trabalho clínico nos casos onde há uma certa evidência daquilo que estaria além do representável, trabalhar com questões que parecem imprimir uma violência radical, situada fora dos limites de um traumático constitutivo.
Cabe ressaltar que há uma diversidade de modelos e concepções teóricas na abordagem dos estados-limite, que podem ser ordenadas em torno de três eixos: problemática dos limites, problemática da perda do objeto e a problemática edipiana e masoquista conforme apontado por Brusset apud Chagnon (2009).
Saatchi
De uma forma bastante geral, não pretendendo se alongar nestas discussões, elencamos apresentar aqui a primeira problemática dos limites. Nesta problemática, percebe-se a fragilidade ou ainda a fluidez dos limites entre o mundo interno e o mundo externo, fragilidade esta que é fonte de desorganização ou desmoronamento, tornando necessária a implementação de mecanismos de defesa, para assim, fazer algumas trocas entre o interior e o exterior, o sujeito e o objeto. A configuração desse transtorno dos limites se refere ao que Brusset (1999) denomina de patologia da interioridade e um funcionamento psíquico exteriorizado. Com base neste autor, podemos perceber o quanto os sintomas relacionados ao vazio interno crônico, a falta de interioridade e de investimento da atividade psíquica própria explicariam a grande dificuldade destes pacientes em “entrar em contato consigo mesmos”, a dependência do objeto e o desejo de viver a vida do outro.
Os estados-limite mobilizam uma clínica que repense suas possibilidades, bem como seus limites teóricos e técnicos à todo o momento, constituindo-se em um grande aprendizado àqueles que se aventuram por terrenos desconhecidos. Trabalhar na fronteira, implica em riscos e uma grande oportunidade para conhecer outras “línguas”, bem como um intercâmbio rico, caso nossa contratransferência funcione mais no sentido de contribuir para o tratamento e não atrapalhar demasiadamente.

* Rogério Thaddeu é psicoterapeuta, especialista em saúde mental e mestrando em psicologia pela U.E.M. Professor do Depto. de Psicologia da Fafijan. Professor de psicanálise e psicopatologia do Instituto Rhema de Pós-graduação. Autor de No limite das emoções: uma análise sobre as psicopatologias na atualidade.

Para saber mais:
CARDOSO, Marta Rezende Cardoso (Org) Limites. São Paulo: Escuta, 2004
CHAGNOM, J Y. Os estados-limite nos trabalhos psicanalíticos franceses. São Paulo: Revista Psicologia USP. Vol 2 no 2 Abril/Junho, 2009. 
THADDEU, R. No limite das emoções: uma análise sobre as psicopatologias na atualidade. Londrina: Amplexo, 2010.

22 de jan. de 2013

SOBRE AS RELAÇÕES NA ATUALIDADE


Rosane Uchikawa

     Desde a fase mais tenra de nossa constituição como seres humanos, nossa subjetividade é construída através da relação com o outro. A mãe que alimenta é o objeto do desejo, sendo ela que traz o gozo através da satisfação de suas necessidades primárias. Afeto e alimento se unem e a subjetividade passa a ser instaurada, dando forma ao modelo de relação objetal que o bebê levará para sua vida adiante.  
"Mãe e Filho" Picasso (1938) 
      As falhas de continência que ocorrem no processo primário de subjetivação são causadoras de lacunas, que são preenchidas por fantasias infantis, de um ego muito incipiente, e que eclodirão em sofrimentos psíquicos e influenciarão diretamente em nossa maneira de nos relacionar, principalmente no que diz respeito as nossas relações afetivas. 
       Se por um lado, a construção de nossa subjetividade inicia-se na relação mãe-bebê, por outro, ela também vai recebendo contribuições determinantes do meio ambiente em que estamos inseridos. Como “colcha de retalhos”, vamos recebendo informações e estímulos, sendo influenciados e diretamente afetados através desta dinâmica de vinculações.    
       Mudam-se as épocas e, por conseqüência, nossa modalidade de relação também não é a mesma. A mídia e a sociedade em geral, se encarregam de ditar “regras”, influenciando nossa forma de pensar (ou de não pensar!), montando um “palco perfeito” para nossas atuações. O mundo nos oferece um leque imenso de objetos apresentados como ideais, com a promessa de tamponar qualquer vazio existencial com toda eficácia. O que impera é o mandamento do gozar, a gratificação está no consumo imediato e descartável.
Grazi Ruas
     A “falta” que buscamos preencher tem origem em processos psíquicos ligados a lembranças e frustrações primitivas. Se pensarmos nas relações afetivas, buscamos no outro, a solução para esse vazio,  muitas vezes,  contaminados pelos ditos populares de que existe  “uma tampa para cada panela” ou “a outra metade da laranja”, o que é campo fértil para projeções e idealizações, pois na realidade, o que esperamos encontrar  no outro, é um espelho de nós mesmos.   
       Ao mesmo tempo em que somos contaminados com a cultura do descartável, cada vez com mais rapidez, também vamos, num processo inconsciente, atuando na busca de um “outro eu” alguém que seja tão “perfeito quanto”, que supra todas “minhas necessidades”, enfim, o “meu reflexo no lago!”. 
       É nessa ciranda, que as relações vão ficando cada vez mais voláteis, pois, o diferente é refugado, quase que automaticamente trocado por outro. E, se pensarmos que, é justamente o diferente que nos faz pensar sobre nossa condição e nosso modo de existir no mundo, fica a questão: Será que estaríamos vivenciando, na atualidade, uma dinâmica perversa de empobrecimento das relações não só afetivas, mas humanas num todo?
      Todas essas influências em nosso processo de subjetivação nos fazem supor, a necessidade de um maior entendimento desses novos arranjos relacionais que se apresentam. Precisamos então, enquanto profissionais psi, refletir sobre as contribuições que a psicanálise pode trazer para essas novas formas de organização, emolduradas pelo mundo pós-moderno.  

*Rosane Uchikawa é psicóloga (CRP: 08/15427)